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[Rogel Samuel]

 

 

         Naquele ano no Aeroporto Eduardo Gomes malas cuspidas daquela garganta, como cospe o menino o chiclete já muito mastigado. Vejo o Senador X e sua esposa, sentado, elegante. Duro. Eu o cumprimento, apesar de estar ele diametralmente oposto ao que penso do Governo Lula. Ele responde, com aceno de mão, meio irritado. Não sei se me reconhece, creio que não. Olho para ver se meu amigo já está lá, à minha espera. Mas não o vejo. Não me sinto cansado, como sempre, quando saio do vôo. A viagem decorreu tranqüila, rápida. Meu vizinho excelente conversador. Assessor do Senado, vai para o interior, para Maués, sua terra, terra do guaraná, daquela gente bonita, morena, alegre. Eu estava com saudade do calor de Manaus. De seus bancos de pedra ao sol, como túmulos do deserto. Do Teatro Amazonas, rachando catedral, do suor escorrendo pelo corpo, pingando as gotas de suor sobre o papel da escrita fina que se mistura no índigo do sal do azul de minha tinta. Em Manaus escrevo à mão, como gosto. Vejo meu amigo. Sua bela esposa. Seu agradável sorriso. Bom ser recebido em sorriso. A felicidade sai pelo calor dos olhos francos, como nos versos de Marti: «cultivo uma rosa branca, / para o amigo sincero, / que me dá sua mão franca». Gosto de Manaus, dos monumentos franceses, do «Temple d' Amour» igual ao de Versalles. «A Toutes les Gloires de la France!».  Versailles-Petit Trianon, no jardim de Marie Antoinette. O «Temple» é uma construção neo-clássica, circular, edifício-umbrela, ou cogumelo, mármore branco, perto do "Pavillon du Jardin Français", em estilo Rocaille. Sim, isto está no centro de Manaus, na Praça Heliodoro Balbi, a Praça da Polícia. Perto, o coreto bordado de flores de metal rendilhado, os tanques sujos e secos, onde outrora nadavam jacaretingas, entre vitórias-regias, momentos de reflexão, sossego, naquela cidade exageradamente quente, barulhenta, onde gosto de andar a pé, como em Paris, no passeio solitário, entre o que sobrou da Zona Franca, pisando no chão as mesmas pedras marcadas com os mesmos passos da infância ali inscritos. Manaus é a mais francesa de nossas capitais. Sim, deixei o Rio frio, úmido, chuvoso. Sem praias, sem luz. Sem cor. É a cor fundamental na face de uma cidade. É a cor que deu a Los Angeles o charme cinematográfico. Ontem falei por telefone com Maíra, de Los Angeles. No coração daquela cidade, ou melhor, em West Hollywood ela mora. Como diz seu namorado paranaense, «Beverly Hill está na esquina». Eles são músicos. Ele toca, ela canta. Ela, amiga de infância, amazonense. Vou visitar a fachada de sua velha casa onde ela morava, numa rua que de não sei o nome por traz de onde havia a piscina do quartel do 27º Batalhão de Caçadores do Exército, onde cresci. Todos os dias, acordavam-nos finos hinos militares, que nunca mais ouvi, mas de que me lembro todos com nitidez estereofônica. Mais adiante, a Zona das prostitutas, a Boite Carapanã, o que restou do Hotel Cassina, a grandeza dos homens ricos da gloriosa época da borracha de 1889. Ali todas as noites se tocava a mesma música, o mesmo bolero lero. «Assim se passaram dez anos, / sem eu ver teu rosto...» Quando estou triste, me lembro daquela música, daquelas mulheres, daquela luz vermelha na porta, do famoso «abajur lilás». Do perfume barato. O arrastado dos pares, dançando livres, no ar. Quando triste escrevo a mão, com esta velha caneta-tinteiro, que já se chamou caneta-fonte. Fonte de velhas idéias tidas, de lembranças apensas. Densas. Na secura fria do silêncio da madrugada batem os relógios fantasmas. Marcam a passagem do tempo, a passagem da Noite, da vida, dos passageiros. Somos viajantes, passageiros. Caminhamos para o nada. Somos todos passageiros. Passamos.