Os dilemas da crítica literária contemporânea

Por Zaqueu Fogaça


O atual momento vivido pela crítica literária brasileira inflama diferentes interpretações. Há quem afirme que o modelo crítico adotado hoje caminha em direção ao abismo; outros entendem que ela passa por mudanças, algo natural diante de um cenário abalado pelas novas tecnologias; e ainda há aqueles que desconsideram qualquer crise, afirmando que ela se encontre, talvez, num de seus melhores momentos.

Na tentativa de entender os percalços que acometem a crítica literária no país e destacar alguns pontos importantes sobre essa delicada discussão, o SaraivaConteúdo dá início, com este texto, a uma série de três matérias dedicadas à crítica. De início, a primeira pergunta que se faz sobre a crítica contemporânea é: ela está em crise?

Para o crítico literário e professor de teoria literária da Unicamp, Alcir Pécora, autor de A Arte de Conversar (Wmf Martins Fontes), há uma crise, mas ela não é exclusivamente brasileira, e sim mundial, como explica: “A crise deriva, de um lado, da perda da centralidade da literatura no âmbito da cultura, o que tem a ver com a crise do Estado-nação e a circulação internacional do capital; de outro, deriva da perda de universalidade de categorias intelectuais que pudessem servir de fundamento para o juízo estético”.

Já o crítico e professor de literatura brasileira da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) Miguel Sanches Neto, autor de A Máquina de Madeira (Companhia das Letras), diz que não se trata de uma crise especificamente da crítica, mas do modelo tradicional adotado pelos críticos. “O jornalismo cedeu espaço ao entretenimento, que colonizou os cadernos literários. Por outro lado, os críticos universitários se preocupam mais com questões teóricas, ideológicas etc., em que o texto criativo se torna secundário. De tal forma que o autor de literatura não conta hoje com um horizonte crítico de recepção mais estável”, analisa.

IMPASSES DA IMPRENSA

Por outro lado, o crítico e professor de literatura brasileira da Universidade Federal de Minas Gerais, Sérgio Alcides, autor de Píer (Editora 34), desconsidera uma crise na crítica. “A crise é o ambiente da crítica. Essas palavras são irmãs, vêm do mesmo verbo grego, ‘Krínein’, que significa ‘distinguir’, ‘separar’, ‘cortar’. É difícil, para mim, conceber a crítica sem uma relação com a imprensa. Mas a imprensa brasileira está mais interessada na indústria do entretenimento do que em literatura, cinema, teatro, dança e música – tudo o que (como essa última forma de arte) tira o ser humano do chão”, diz Alcides.

Autor de Aleijão (7Letras), Eduardo Sterzi, poeta e também professor de teoria literária da Unicamp, tem outro entendimento do assunto. Ele assegura que a crise não recai sobre a crítica, mas na imprensa comercial, e justifica: “Ora, o que está desaparecendo, na verdade, é o espaço para a crítica nos meios tradicionais, como jornais e revistas de (suposta) grande circulação. Como esse fechamento acompanha a progressiva perda de importância desses veículos no debate público sério, talvez não seja algo a se lamentar com grandes ênfases”.
 
Miguel Sanches Neto e Alcir Pécora

A escassez dos espaços dedicados à crítica literária na imprensa, segundo Alcides, se faz notar no mundo inteiro; entretanto, no caso do Brasil, encontra-se um agravante. “Há dezenas de jornais e revistas nos Estados Unidos voltados para um público exigente, que obriga os editores a publicarem crítica. A mesma coisa acontece na Espanha, na França, na Itália e na Alemanha. No Brasil, é a sociedade que se demitiu, odeia crítica, detesta a simples ideia de emancipação, porque precisa esconjurar a própria má-consciência”, avalia.

Se por um lado as razões da crise são complexas e difíceis de se determinar; por outro seus efeitos são facilmente perceptíveis, pondera Pécora, e prossegue: “No jornal, as críticas vão quase que exclusivamente a reboque de releases e dos lançamentos de mercado – no caso brasileiro, agravado pelo provincianismo em que tudo circula em torno de duas ou três editoras, jornais e fundações privadas. Em vez de críticos literários, temos colunistas literários”, assevera.

PÁGINAS ESPALHADAS

Eduardo Sterzi levanta a possibilidade de que talvez nunca tenha existido tanta crítica literária no Brasil quanto na atualidade; e relaciona onde ela pode ser encontrada: “Pode-se lê-la em livros, revistas ditas ‘acadêmicas’, revistas literárias, revistas de cultura em sentido amplo, jornais alternativos como o Atual e Tabaré, panfletos como o Sopro, sites dedicados à literatura, blogs, redes sociais. Pode-se escutá-la em aulas, palestras, debates e programas de tevê em emissoras educativas”.

Ao apontar diferentes espaços onde é possível encontrar crítica, Alcides questiona a força que eles têm no debate público. “Ainda há um punhado de suplementos literários e revistas de crítica no país. E também se pode ler crítica na internet, em blogs. Mas nem os suplementos nem os blogs podem dar conta sozinhos da tarefa mais ampla da crítica, porque seu raio de atuação tende a descrever comunidades de leitores e [esses meios] não chegam a fazer eco na sociedade. Logo, não há dissenso. E sem dissenso não há crise. Nem crítica”, avalia.
 
Sérgio Alcides e Eduardo Sterzi

EFEITOS NA LITERATURA

O enfraquecimento da crítica pode comprometer a literatura? Pécora entende que sim. “Se não há crítica, o que mais sofre é a disposição firme para a produção de uma forma fora de ordem assimilada, do consenso que é sempre mais ou menos preguiçoso. Estamos em meio a uma crise profunda, que não se conhece suficientemente ainda. Reconhecê-la é o primeiro passo”.

Para reforçar a relevância da crítica para a literatura, Sanches toma como exemplo Clarice Lispector. “Quando dizemos que ela é uma grande escritora, essa percepção vem do conjunto de leituras densas que sua obra sofreu. Sem a crítica mais sistemática, que procure situar o livro na estante atemporal, a literatura de hoje se iguala ao entretenimento, tornando-se mero objeto de consumo artístico”, diz.

Alcides também entende que uma crise na crítica tende a se tornar, em seguida, um problema para a literatura, e destaca: “É claro que essa crise tem consequência para a literatura, porque as instâncias que estabelecem o crivo não se arejam pela crítica, como é o caso das editoras mais prestigiadas, segundos cadernos, curadores de eventos literários. Ao atuar, em geral, fora de qualquer alçada efetivamente crítica, tudo fica meio sequestrado pelo comércio, pelo espetáculo, pelo favorecimento e – consequentemente – pelo conformismo”.

Para Sanches, não há outra saída senão valorizar o trabalho do crítico. “A crítica tem que ser vista como uma profissão, que dê sustentação para um projeto intelectual. Sem isso, será sempre um bico, ao qual nenhum intelectual dedicará o seu melhor. Outro caminho é a cessão de bolsas para quem exercer essa função. Interessante é que todos os programas de incentivo à leitura não apresentam projetos na área da crítica”, revela.

Ainda segundo Sanches, outro fator que compromete a crítica contemporânea é a vasta produção literária. “O fato é que não temos mais pessoas que deem conta da produção contemporânea, que conheçam o que está sendo escrito hoje. Pelo volume de lançamentos, o papel do crítico se tornou inviável”, analisa.
 
 
Publicado originalmente no Blog da Editora Saraiva.