OS CRIMINOSOS

Miguel Carqueija


    Espiei em redor e vi que, na livraria escura, já não havia mais nenhum freguês. Eu sempre vou à noite, quando o velho Alcebíades está para fechar; a não ser, é claro, que eu procure outra coisa. Quando vou à noite — ele fecha mais ou menos às oito horas — meu amigo e cúmplice já sabe do que se trata.
    — Que bom que o senhor veio — disse, em voz bem baixa. — Não há nenhum perigo, pois não?
    — Fique tranquilo, não vejo como alguém possa saber. Fora do círculo, é claro.
    — O Alfredo fecha a livraria. Podemos ir agora. O senhor terá orgulho do seu tesouro.
    Acompanhei-o até os fundos da loja e depois, por uma velha e encarquilhada porta, passamos para a escada que descia ao porão. Enquanto descíamos, guiados pela luz da lanterna do livreiro, ouvíamos os passos apressados dos ratos em fuga.
    Franzi a testa; Alcebíades não viu, naturalmente, pois estava á minha frente, mas seja como for procurou, mais uma vez, tranqüilizar-me:
    — É claro que eles não têm acesso à sua encomenda.
    — Eu teria um colapso se isso acontecesse.
     Alcebíades acendeu a luz do aposento, luz fraca e mortiça, e buscou com o olhar um canto esquecido, através de suas grossas lentes. Alcançou então uma pilha de velhos discos de vinil, que ele vendia em seu sebo. Ajudei-o a remover o entulho e chegamos enfim a uma velha e conhecida tábua. Uma pressão num ponto determinado, e o livreiro dobrou-a para baixo; enfiou a mão e puxou um saco plástico cinzento de um escaninho secreto.
    — Aqui está ele.
    — Tem certeza que ninguém desconfia?
    — Absoluta, seu Torquato. É tudo feito com muita discrição. O senhor é que tem que tomar o máximo cuidado, não mostrar nem aos filhos, essas coisas de sempre. Se bem que para o senhor são só dois anos de prisão. Para mim seriam cinco e a interdição do meu negócio. Como vê tenho todos os motivos para ser prudente.
    Retirei a fita adesiva que fechava o saco e puxei o volume. E lá estava em minhas mãos aquela coisa incrível: Fuga para parte alguma, por Jeronymo Monteiro, Edições GRD, Rio de Janeiro, 1961. Na capa cor de mel, a figura de uma formiga. Páginas envelhecidas mas ainda inteiras.
    Aquele lendário romance de ficção científica, marco desse gênero no Brasil, agora era meu e eu o leria! Só faltava pagar o livreiro (regiamente, diga-se de passagem), o que fiz imediatamente após abraçá-lo de alegria.
    — Eu também fico contente por fazê-lo feliz — disse ele. — Afinal você cobriu seis ofertas. Mas, pelo amor de Deus, guarde isso a sete chaves!
    — Pode deixar, amigo. Tirando fora os nossos, ninguém mais saberá. Puxa, pensar que vou poder ler esse livro!
    E saí de lá, feliz da vida, com o livro bem escondido em minha mochila. Esses momentos são bem difíceis, desde que o governo proibiu, como subversiva, a literatura de ficção científica, confiscando obras e punindo severamente quem as compre e possua ou, mais ainda, quem as venda ou publique. Praticamente só nós, os ocultos fãs da FC, declarada ilegal no Brasil em 2031, mantemos acesa no Brasil a chama desse gênero tão belo e empolgante, e nos tornamos foras-da-lei para defender o nosso direito de sonhar.