Ilustração: Rakushisha, xilogravura de Tomikichirō Tokuriki.
Ilustração: Rakushisha, xilogravura de Tomikichirō Tokuriki.

[Cláudio Trasferetti]

Imagine que você seja dono de um pomar de caquizeiros carregados. Você acerta a venda dos frutos, mas na véspera da colheita, uma forte tempestade os derruba e os estraga, deixando-o a ver navios. Pois foi isso que aconteceu, segundo a lenda, a Mukai Kyorai, um dos discípulos do mestre Bashō, o mais famoso haicaísta japonês. Depois desse fatídico incidente, sua casa ficou conhecida como “Rakushisha”, que significa Cabana dos Caquis Caídos. Foi nessa cabana que Bashō se hospedou quando esteve em Quioto e, durante essa estadia, escreveu um de seus diários, intitulado Diário de Saga.

A “Rakushisha” tornou-se um ponto turístico da cidade de Quioto, nas proximidades do pitoresco bambuzal de Arashiyama. É um local de peregrinação para os apreciadores de haicai. Eu mesmo gostaria muito de tê-la visitado. Devo ter passado bem perto dela quando visitei Arashiyama anos atrás, mas, naquela época, nada sabia sobre essa icônica cabana. Ao longo da semana que passou, contudo, soube de sua existência por meio de um belo livro da literatura brasileira contemporânea, escrito por Adriana Lisboa, e que tem seu nome por título.

Em “Rakushisha”, o livro, acompanhamos o encontro entre Haruki e Celina e seus desdobramentos. Haruki é um nissei comissionado para ilustrar a versão brasileira do Diário de Saga, de Bashō, e Celina é uma carioca com sangue nordestino que trabalha como designer e costureira de bolsas. Ambos às voltas com dores de amores pregressos, empreendem juntos uma viagem ao Japão, embalados pela excelente companhia desse grande viajante e sagaz observador chamado Bashō e seus haicais.

“Rakushisha” é, assim, o relato de um deslocamento geográfico que possibilita a essas duas personagens um mergulho em si mesmos. Sei que estamos diante do clichê da tomada de consciência e da autotransformação, mas ele foi magistralmente explorado pela Adriana Lisboa nesse livro. Celina passeia por Quioto, visita templos famosos como o Kyomizudera, o Caminho do Filósofo, o bairro de Gion e, ao mesmo tempo, desbrava montanhas, florestas e rios dentro de si própria, lugares inóspitos que ela precisava de coragem para encarar. Algo análogo faz Haruki, o nissei que nunca antes havia se interessado pelo país de seus antepassados. Esse turismo interior lhes franqueia o acesso a um novo estado de espírito que os ajuda a lidar com as adversidades, sinalizando a trilha rumo a um tema inesperado: o perdão. E provê um exemplo a todos nós que, com variadas frequências e intensidades, precisamos nos reconfigurar depois que os nossos preciosos caquis são destruídos numa indesejada tempestade.

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Ilustração: Rakushisha, xilogravura de Tomikichirō Tokuriki.