Olhares perdidos

 Ademir Assunção

Desde pequeno tenho uma tendência para a contemplação. Lembro vividamente como gostava de ouvir a chuva repicando na vidraça. Gosto até hoje. Ficava parado, no quarto, ouvindo os pingos batendo no vidro, olhando para o nada, pensando em nada, só ouvindo. Uma vez tomei chá de cogumelo com dois amigos em Londrina. Um deles tinha um crânio de cachorro entre suas relíquias. Não faço idéia onde ele havia arrumado aquela caveira. Só sei que ficamos deitados no chão, durante muito tempo, olhando aquele crânio, as fossas nasais, as cavidades oculares, o osso liso da cabeça. Não sei descrever o que estava vendo, o que estava sentindo, no que estava viajando. Mas lembro da cena. Lembro de ter ficado longo tempo olhando um louva-deus cercado por três lagartixas, certa vez, na casa de uma amiga na Praia Brava. Gosto de olhar os pequenos seres que dividem o mesmo espaço comigo no planeta. Talvez seja por isso que gostei bastante deste poema do Ferreira Gullar (infelizmente, o facebook não permite reproduzir a espacialização dos versos originais):

 

UMA ARANHA

 

ela surgiu não sei de onde

quando abri o Dicionário de Filosofia

de José Ferrater Mora

(no verbete Descartes, René) mi-

núscula

com suas muitas perninhas

quase invisíveis

cruzou a página 1305 como se flutuasse

(uma esfera de ar

viva)

e foi postar-se no alto

no limite entre o texto e a margem branca

enquanto eu

fascinado

indagava:

como pode residir

insuspeitado

nestas encardidas páginas

- em minha casa, afinal de contas ¬–

um tal ser

mínimo mas vivo

consciente de si

(e como eu

parte do século XXI)

e que agora parece observar-me

tão espantado quanto estou

com este nosso inesperado encontro?