Olhares perdidos
Em: 18/07/2012, às 07H24
Ademir Assunção
Desde pequeno tenho uma tendência para a contemplação. Lembro vividamente como gostava de ouvir a chuva repicando na vidraça. Gosto até hoje. Ficava parado, no quarto, ouvindo os pingos batendo no vidro, olhando para o nada, pensando em nada, só ouvindo. Uma vez tomei chá de cogumelo com dois amigos em Londrina. Um deles tinha um crânio de cachorro entre suas relíquias. Não faço idéia onde ele havia arrumado aquela caveira. Só sei que ficamos deitados no chão, durante muito tempo, olhando aquele crânio, as fossas nasais, as cavidades oculares, o osso liso da cabeça. Não sei descrever o que estava vendo, o que estava sentindo, no que estava viajando. Mas lembro da cena. Lembro de ter ficado longo tempo olhando um louva-deus cercado por três lagartixas, certa vez, na casa de uma amiga na Praia Brava. Gosto de olhar os pequenos seres que dividem o mesmo espaço comigo no planeta. Talvez seja por isso que gostei bastante deste poema do Ferreira Gullar (infelizmente, o facebook não permite reproduzir a espacialização dos versos originais):
UMA ARANHA
ela surgiu não sei de onde
quando abri o Dicionário de Filosofia
de José Ferrater Mora
(no verbete Descartes, René) mi-
núscula
com suas muitas perninhas
quase invisíveis
cruzou a página 1305 como se flutuasse
(uma esfera de ar
viva)
e foi postar-se no alto
no limite entre o texto e a margem branca
enquanto eu
fascinado
indagava:
como pode residir
insuspeitado
nestas encardidas páginas
- em minha casa, afinal de contas ¬–
um tal ser
mínimo mas vivo
consciente de si
(e como eu
parte do século XXI)
e que agora parece observar-me
tão espantado quanto estou
com este nosso inesperado encontro?