Odylo de Nazareth

José Sarney

Quando nasci, Odylo chegava, aos quinze anos, ao Rio de Janeiro. Era a nossa diferença de idade. Mas quando cheguei ao Rio de Janeiro para começar a vida política, essa diferença se diluiu e nos tornamos amigos de infância, amigos da vida toda, amigos além da vida.


Mais do que seu amigo, tive a ventura de ser devoto da seita de Santa Teresa — onde construiu sua casa —, da qual ele era o Santo, Santo de altar. Admirado por todos nós, pelo milagre da sua inteligência, da sua inexcedível cultura — Afonso Arinos dizia, e registrou em suas memórias, que Odylo sabia tudo — e da sua bondade, da sua extraordinária bondade humana. Todos os que conviveram com Odylo tiveram o ensinamento de sua bondade.


Tinha uma cultura da amizade com uma filosofia própria, que incluía o que chamava de “deveres da amizade”.


Odylo era um homem extraordinário. Todos nós que o conhecemos sabemos que a sua personalidade era tão forte que, além de encher as nossas vidas, ainda hoje, 35 anos depois da sua morte, é difícil passar um dia que não se tenha um exemplo, que não se tenha uma lembrança, que não se tenha uma lição.


Lembro-me da primeira vez que estive com Odylo Costa, filho. Era o fim da década de 1940. A nossa geração reunia-se com Ferreira Gullar, Lago Burnett, Bandeira Tribuzzi e aqui vivíamos o sonho do neomodernismo de pós-guerra e fundávamos uma revista literária. Fizemos um jantar num restaurante tradicional, e, quando trouxeram o vinho, exigimos que fosse o Colares, porque, numa terra de poetas e num jantar de intelectuais, havia de ser o vinho de Eça de Queiroz que nos deviam servir, o Colares.


Recordo-me também da última vez que o vi, as mãos frias, os olhos fechados no caminho da eternidade. Com que profunda emoção pude despedir-me do amigo com quem, naqueles anos todos, raros foram os dias, as manhãs, as tardes e as noites em que não estivemos juntos, por cartas, por telefone, pela convivência, ou no gosto da conversa pessoal.


Falo aqui com emoção profunda, uma vez que me ligavam a Odylo os laços mais estreitos de uma amizade que, posso dizer, é eterna. Amizade que nos tornou tão próximos que, com a sua morte, perdi um pedaço de mim mesmo, e dos maiores, e tirado de meu corpo e de minha alma.


Nossa amizade foi tão grande que conseguiu fazer o milagre de derramar-se sobre os seus filhos e toda a sua família, e sobre os meus filhos e a minha família toda, de tal modo que constituímos um só lar, uma só família, uma só aspiração, um só afeto, uma só amizade.


Odylo nasceu no Maranhão, em 14 de dezembro de 1914. Nasceu em São Luís, aqui perto, na Rua da Paz, nome que talvez tenha lhe dado aquela paz da sua grande alma. Era filho de famílias tradicionais do Estado, do Desembargador Odylo de Moura Costa…


Faço parênteses para contar uma destas histórias que Odylo, extraordinário causeur, gostava de repetir: seu pai, Secretário de Justiça, depois desembargador aqui no Maranhão, participou do julgamento de um habeas corpus. O Tribunal tinha sido avisado que ele não deveria ser concedido; mas foi. Saindo o resultado, a polícia entrou atirando. Todos correram. O Dr. Odylo também, mas sua beca ficou presa na passagem de uma porta. E ele reagiu: “Me larga, soldado, que eu votei com o governo…”


A mãe de Odylo era Dona Maria Aurora Alves Costa. Seu avô era daqueles senhores de engenho de cachaça e rapadura, que morava no brejão, onde também morava seu bisavô, o velho João José de Oliveira Costa. Foi por aí, numa cidade que ele tanto amou, São José dos Matões, depois São José do Parnaíba, São José das Cajazeiras, Cajazeiras, Flores e, por fim, Timon — nome que ele tanto deplorava, pedindo que lhe fosse devolvida a bela designação de São José das Cajazeiras ou então de Flores — foi por aí que ele viveu sua meninice, à beira das águas do Parnaíba, entre terras do Maranhão e do Piauí. Assim ele fala dessa meninice:


“Leite tomado na cuia, caminho molhado da chuva ainda não marcado dos pés da madrugada, corrida ligeira de calangos na mata, briga de cobras entrevista de longe; briga de arapongas no pé do angico, derrubadas de palmito, cavalos selados, jacaré boiando na lagoa, curimatãs aflorando na superfície das águas, manga apanhada com a mão, juçara fresca, agregados abrindo valas para desviar o riacho, cheiro de cimento fresco usado para empedrar e isolar a nascente e seriema cantando na chapada.”


Sua infância foi povoada, de maneira indelével, das histórias, das pugnas, das lendas, dos bichos e das sagas daquele meio-norte.


Estudou em Teresina, no Colégio Sagrado Coração de Jesus, das Irmãs Pobres de Santa Catarina. Depois, frequentou o Liceu Piauiense e, aos 14 anos, publicou o seu primeiro livro — um livro de versos chamado Alvorada, hoje perdido. Antônio Lopes, grande figura de polígrafo do Maranhão, logo que teve notícia do livro, restaurou aquela rivalidade tão boa e amiga do Maranhão com o Piauí, afirmando:


“Logo se vê que esse menino nasceu do lado de cá do Parnaíba.”
Em março de 1930, Odylo vai com a família para o Rio de Janeiro, onde se forma na Faculdade de Direito da Universidade do Brasil, em 1933. O jovem bacharel logo torna-se procurador do IAPC, Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários, atividade em que se aposentará e que acumulará com sua vida de jornalista.


No dia de Reis de 1931, Félix Pacheco, amigo de seu pai, leva o Odylo para o Jornal do Commercio. Logo frequenta uma coluna de crítica literária. Organiza uma Seleta Cristã e, em 1934, publica Graça Aranha e Outros Ensaios, recebendo o prêmio Ramos Paz, da Academia Brasileira de Letras.


Em 1937, publica o Livro de Poemas de 35, de parceria com Henrique Carstens. A partir daí passou a ser poeta bissexto, e como tal Manoel Bandeira o incluiu na Antologia dos Poetas Bissextos Contemporâneos.


Durante o Estado Novo, com aguda sensibilidade política e profundas convicções democráticas, lança o Distrito da Confusão, uma coletânea de críticas ao regime. Ao lado de Virgílio de Mello Franco, participa ativamente da redemocratização e ocupa a Secretaria Geral da UDN, em 1945. Funda e dirige a revista Política e Letras.


Odylo era muito, mas muito mesmo, impontual. Marcávamos um horário e ele chegava no dia seguinte. Quantas vezes perdi avião e outros compromissos esperando por ele… Um desses atrasos nos livrou de um vexame: foi no golpe do Lott contra o Café Filho, em 1955. Odylo me ligou: o Carlos Lacerda nos convocava, com toda a UDN, para embarcarmos no Tamandaré, que o Almirante Penaboto pretendia levar para Santos, de onde devia partir a reação militar. Fui para a casa de Odylo, em Santa Teresa. Ele se barbeava, calmamente, o tempo foi passando. Quando chegamos no Arsenal da Marinha já não havia o Tamandaré. E nós dois escapamos de ter participado desta aventura equivocada…


Em 1948, com a morte de Virgílio, Odylo volta-se para as campanhas do Maranhão. Não tivemos nenhuma luta aqui no Estado em que não o encontrássemos, como um voluntário de primeira linha, na gratuidade dos seus sentimentos e do seu idealismo, por amor à sua terra, falando ao povo da nossa tradição e das nossas obrigações, numa linguagem que conseguiu lugar insubstituível na alma popular, pelas histórias que contava e que só ele sabia contar, nos grandes comícios de que conosco participava.


Escreve uma peça teatral encenada pela Companhia Dulcina — O Balão que Caiu no Mar.


Como já disse, o que avulta na vida de Odylo é o jornalista, aquele homem que trata o fato do dia-a-dia, aquela pena leve e suave, de linguagem enxuta, aquele estilo inconfundível que o fez um marco também definitivo na História do jornalismo brasileiro: foi ele quem fez a primeira grande revolução de nossos jornais, quando Chefe de Redação do velho e tradicional Jornal do Brasil, desencadeando ali um processo de modernização que contagiou toda a imprensa do País. Ele foi realmente uma figura solar do jornalismo brasileiro, o grande renovador da imprensa brasileira. Renovador não só do ponto de vista da linguagem e técnica, como também sob o ponto de vista gráfico. A revolução que ele processou no jornalismo prosseguiu através das gerações que se formaram com o seu pensamento, o seu ensinamento. Mas sua longa carreira ficou registrada no Diário de Notícias, onde teve várias funções, na Tribuna de Imprensa, nas revistas Senhor, O Cruzeiro e Realidade, além de colaborações em inúmeros jornais e revistas.


Em 1963, eis que Odylo recebe do destino o golpe que lhe marcou profundamente a vida: seu filho primogênito, Odylo Costa, neto, foi assassinado. Cheguei ao Rio de Janeiro e já o encontrei no cemitério. Ao me abraçar, repetiu apenas algumas palavras de um conto que eu escrevera:


“Deus quis, Deus fez, Deus seja louvado.”


Na alma desse homem, que assim recebia a ferida irreparável, não cresceu a semente do ódio nem da vingança, mas a semente do amor, que transformou seu sofrimento: dali por diante, tornou-se defensor dos menores abandonados, porque fora um desses delinquentes que roubara a vida do seu filho. Desde então engajou-se nessa luta, pugnou para que se criasse o Ministério do Menor, pelejou para que se instituísse a Funabem, advogou todas as causas dos menores abandonados. Nos seus lábios nunca ninguém viu a marca do ódio, a marca do ressentimento, mas a marca do amor profundo de um homem que sublimara a dor no sentimento maior da solidariedade humana.


É um aspecto comovente na história desse homem exemplar essa transfiguração da dor. Ele mesmo dizia que não queria ser um ressentido, nem ser um ressequido. O destino, atingindo-o fundamente, pela mão de um menor abandonado, fê-lo voltar-se em busca de amparo para todos os deserdados da sorte, jogados nos caminhos do infortúnio e do crime; da mesma forma, marcando-o com uma filha deficiente, deu-lhe forças para também dedicar sua vida ao trabalho em favor dessas frágeis criaturas. Odylo chegou a ser Presidente da Fundação Pestalozzi. E quantas vezes em Brasília, nos corredores dos ministérios, arrastava-se, com o coração já em frangalhos, para pedir apoio para o movimento nacional daquelas crianças. Ou buscando minorar o drama que ele havia sentido em sua casa, na própria carne, mas que jamais fora motivo de ressentimento ou de dor, e sim de alegria: sua filha Maria Aurora participava das reuniões da família, como se fosse uma rosa no meio da casa, uma fonte de alegria e nunca de tristeza. Essa alegria era um exemplo que todos os seus amigos e companheiros que frequentavam sua casa testemunharam.


E sua casa, no Rio de Janeiro, era um sobrado de São Luís. Era um salão, um dos últimos salões literários do Brasil, onde as coisas do espírito estavam presentes e conviviam com uma família que ele soube fundar, trazendo de Campo Maior esta figura extraordinária que, ao seu lado, conseguiu modelar e completar a sua figura: Nazareth, simples e boa, sua companheira e também ilustradora dos seus livros.


Nazareth era uma mulher excepcional. Manuel Bandeira lhe dedicou um poema que diz nos versos finais: “… pois a intemerata piauiense é / Nossa Senhora de Nazareth”. Ela deixou Campo Maior muito moça. Um dia o casal foi visitar sua mãe. A cidade tratou a ocasião como a da volta da filha pródiga, coincidindo com uma peça que se representava com este título. Nazareth e Odylo foram ver a peça, que contava a desventura de uma jovem que tinha mudado para o Rio de Janeiro, onde chegara a ser “…bilheteira do cinema Odeon…”; todos choravam, menos o casal. E Campo Maior passou a comentar: “Viram como a Nazareth está bestinha? Fica rindo da desgraça dos outros!”


Depois da morte do seu filho, inicia-se uma nova etapa na vida literária de Odylo, na qual ressurgem o poeta e o novelista, o homem de letras de corpo inteiro, mais dedicado à sua obra. Em 1965, publica a novela A Faca e o Rio. Um detalhe marca a presença do homem sob a pena do escritor: Odylo adverte, em nota preliminar à história, que os nomes das pessoas, terras e coisas que a inspiram são nomes de pessoas, terras e coisas que conheceu e amou na infância, noutros lugares da beira do rio Parnaíba. A novela está estruturada no eixo de sua memória, que une o Piauí e o Maranhão. No mesmo veio, deixa contos, reunidos em Histórias da Beira do Rio.


Do poeta, o que se pode dizer é que se consagrou com Tempos de Lisboa e Outros Poemas, Cantiga Incompleta, Os Bichos no Céu, Notícia de Amor, A Vida de Nossa Senhora, e dois livros inéditos, que não pôde ver publicados — Anjos em Terra e Boca da Noite. O mesmo universo afetivo guia a mão do poeta: seus versos estão cheios desse amor com que construiu sua vida e das lembranças da gente, das casas, dos bichos que povoam as margens do rio de sonho que flui até o seu definitivo silêncio.


Um dos maiores poetas que já tivemos, seu nome está inscrito na História da literatura brasileira entre os seus mais altos valores. Para não se ficar em meu juízo, que pode parecer suspeito, invoco o de Guimarães Rosa: “Você é um dos seis melhores, maiores poetas nossos. A mim, em muito, talvez o que me traz mais necessariamente a poesia, como conversa prévia que Deus concede.”


Uma das constantes de sua poesia é seu amor por Nazareth, que Odylo repetia sem cessar. Dizia: “Sei apenas do amor correspondido.” Um exemplo é este soneto que pode ser considerado uma das mais belas páginas da nossa poesia:


Soneto de Fidelidade
Não receies, amor, que nos divida
um dia a treva de outro mundo, pois
somos um só que não se faz em dois
nem pode a morte o que não pôde a vida.


A dor não foi em nós terra caída
que de repente afoga mas depois
cede à força das águas. Deus dispôs
que ela nos encharcasse indissolvida.


Molhamos nosso pão quotidiano
na vontade de Deus, aceita e clara,
que nos fazia para sempre num.


E de tal forma o próprio ser humano
mudou-se em nós que nada mais separa
o que era dois e hoje é apenas um.


Esse amor por Nazareth, abençoado por seus padrinhos de casamento — Ribeiro Couto, Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira —, era o centro de sua vida. Explicava Drummond: “Odylo e Nazareth, tão irmanados / que um não é sem o outro, na paisagem / de filhos e trabalhos ajustados / ao desígnio de Deus: em clara imagem, / feita de transparência e aberta em flor, / nos dois se grava esta lição: Amor.”
E Odylo:


Soneto do Amor Teimoso


Amo-te hoje do mesmo amor teimoso
daquele dia em que te vi primeiro
e se te amei desde o primeiro instante
hei de te amar até o derradeiro.


Somam-se em mim para te amar a vida
e a morte: nem jamais eu suspeitara
que do capricho pela adolescente
viesse esta força indefinida e rara.


Amor feito resina, porque chora,
calado como as coisas, como o chão,
mas capaz de irromper — estranha lava —


numa festa de flor, só flor, mais nada,
cobrindo o tronco velho e os galhos secos
como as quaresmas que teu filho amava.


E continuava ainda nos versos finais:


O segredo


Amar foi meu fortíssimo segredo.
Pus meu ofício humilde e bom de poeta
a seu serviço, sem vanglória ou medo,
fiel a essa aspiração secreta.


Cuidei de amor a todos os instantes.
E se acaso me viram descuidado
fingia apenas, como nos semblantes
dos atores o teatro é simulado.


De olhar atento andei pelo mistério:
água de mina para minha sede
e no deserto pão e refrigério.


Neste cair da noite, amigos, vede:
a aleluia infantil nos acompanha,
voz do amor na descida da montanha.


Mas o verso de Odylo foi muito marcado também por outros sentimentos. Como o da perda:


A Meu Filho


Recorro a ti para não separar-me
deste chão de sargaços mas de flores,
onde há bichos que amaste e mais os frutos
que com tuas mãos plantavas e colhias.


Por essas mãos te peço que me ajudes
e que afastes de mim com os dentes alvos
do teu riso contido mas presente
a tentação da morte voluntária.


Não deixes, filho meu, que a dor de amar-te
me tire o gosto do terreno barro
e a coragem dos lúcidos deveres.


Que estas árvores guardam, no céu puro,
entre rastros de estrelas, a lembrança
dos teus humanos olhos deslumbrados.


E em “Memória”:


Tudo é tão fácil de evocar.
Como quem acende uma lâmpada num quarto escuro, aos tateios:
longe, muito longe, o mais longe na infância (entretanto quase sem névoa).
a mangueira a que subi no quintal,
a tempestade nas canoas cortando o rio,
a água a escorrer do vestido roxo de minha Mãe,
o banco riscado a canivete,
a briga riscada de sangue.
Mas os mortos…
Caminhamos entre sombras.

E neste começo de “Confissão plena”:
Já não era cedo quando encontrei a mulher no meu caminho. Ficamos um.
Nada do que me deu o destino recusei.
Ele deu e tirou. Aceitei.
O anjo que Deus me pôs no quarto veio com as asas arrancadas: sangrava. ​​​​​​​​​​​[Amei-o.
Deus me feriu no primogênito. Ergui a cabeça.
Construí e derrubei a casa. Doeu, mas guardei-a dentro de mim intocada.
Muitas vezes levantei ao céu os braços mutilados. Não invocava
​​​​​[as legiões de socorro, as espadas de fogo
prometidas e entressonhadas.
Queria apenas um sinal de esperança. Bem simples.

Ele tinha um amor ao Maranhão, profundo e inexcedível, e um extraordinário amor pelo País. É constante em sua obra a evocação das terras em que vivera, Maranhão, Piauí, Rio de Janeiro, Portugal… Dedicou a mim este
Soneto Maranhense
Ai terra que me dói, meu brejo escuro:
xexéus nos ninhos do buritizal.
Na lagoa as mulheres batem roupa
numa nudez sem pejos e sem gritos.
Nascem de novo os olhos de eu menino.
Cavam os braços a levada funda.
Correm, ferozes, jacarés no choco.
Na lama do curral, gibões e vacas.
Tucanos voam. Bandos de marrecas
cantam bem longe sobre os bois que choram.
Paraíso da infância, abre caminho
pelo mar, pelas grotas, pelas cercas,
e traz-me o cheiro bom das sapucaias
para a cura teimosa da saudade.
E São Luís:
Memória da cidade natal
Da cidade onde um dia a madrugada
me penetrou no peito para a vida
e minha Mãe, na face enluarada,
a um sorriso calado deu guarida
para acolher o filho que nascia
moreno como as pedras e os pardais,
no calor de dezembro, na alegria
ruidosa do preparo dos Natais,
conservo na memória o cheiro bom
de pão, pamonha quente e manga em flor,
enxurrada, ladeira, praia rasa,
e a sombra onde escutei primeiro o som
do nome pai, vendo a primeira cor
nas telhas velhas da primeira casa.
Profundamente católico, atravessando duros mares, guardou a fé da infância:
Poema de Natal
Quando Jesus nasceu
no presépio pobre
viu primeiro os bichos.
Teve pena deles,
mas sorriu.
Só então é que olhou os homens
— Maria, José, os pastores e os reis —
e, esquecido de que era Deus,
como qualquer outra criança
chorou.
O ar da terra entrou aos socos nos pequenos pulmões.
Ficou Homem.
Aflita, a Mãe curvou-se.
Na manjedoura um fio de capim guardava ainda a flor.
E a Senhora mostrou a vida sempre renascente ao menino,
que voltou a sorrir.


Seu colega de universidade, o abade do Mosteiro de São Bento de Salvador, Dom Timóteo Amoroso Anastásio, escreveu sobre Anjos em Terra: “Esta obra conjunta do casal amante me parece uma melodia gregoriana. O cantochão é o casamento perfeito da música e da palavra. Há nele o respeito recíproco, e é isto que me parece acontecer entre o verso e o desenho, fundidos sem se desqualificarem, o máximo de unidade no máximo de alteridade. Só mesmo o puro amor pode fazer tal milagre.” Odylo, fazendo versos para iluminar os desenhos de Nazareth, faz confessar “O Anjo do Violino”:


Como o seguisse desde pequenino,
foi meu destino, desde que aceitei
fazer do seu destino meu destino,
ter na sua vontade minha lei.


Muitas vezes, confesso que estranhei
tanta inconstância e tanto desatino.
Mas quando o via triste — era meu rei! —
chegava a lhe emprestar meu violino.


E Te peço, Senhor, que quando a morte
levar esse que foi tão mal guardado,
se outro ser me confiares, em Teu alto


poder, não lhe reserves outra sorte:
igual fragilidade no pecado
mas na consciência o mesmo sobressalto.


Pressentiu o fim da vida e, pouco antes de morrer, escreveu:


Boca da Noite


De repente, eis-me em tudo tão tranquilo
como se a morte já tivesse vindo.
Não me ocupa o amanhã para construí-lo.
Nem me lembra se ontem não foi lindo.


Da cinza não me queixo pois foi brasa.
Entre os livros não sofro solitário.
Árvore e filhos deram luz à casa.
Tive flores de irmãos no meu calvário.


Sinto entre as sombras o invisível rio
descer tão lento agora que a canoa
para no solo antigo que a povoa.


Nem alegria ou dor, calor ou frio.
​​No mundo ponho uns olhos bons de avô:
​​foi a boca da noite que chegou.


Pouco depois escreve o último poema, “Insônia”, que termina assim:

Passo do desespero para o dia
claro, da noite inquieta para a luz:
se tivesse meu símbolo seria
um olho d’água que nasce ao pé da cruz.


Com a palavra cruz, ele encerra toda a sua obra poética; e foi a última que escreveu. Homem de fé, de grande fé, termina toda a sua obra com uma palavra de fé — a palavra cruz.


Odylo, já disse, era um homem de muitos amigos. Em sua casa conheci políticos, jornalistas, escritores, juristas. Ali me aproximei de Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Carlos Castello Branco, Afonso Arinos, Rachel de Queiroz, Prudente de Moraes Neto, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Carlos Chagas, Caio Tácito, Gilberto Amado, Jorge Amado, Peregrino Júnior, José Américo de Almeida, Gilberto Freyre, António Alçada Baptista, e paro por aqui para não relacionar toda a cultura brasileira daqueles trinta curtíssimos anos em que compartilhamos a vida. Ao chegar à Academia Brasileira de Letras, em 1970, Odylo fez um hino à amizade — “não sou senão a soma dos meus amigos” —, destacando nela o compadrio, para terminar evocando as mãos de Virgílio de Melo Franco.


Na Academia Maranhense de Letras ele me escolheu para recebê-lo, destacando-me entre seus amigos já naquele ano distante de 1958. Ele falou de Clodomir Cardoso e Joaquim Serra. Eu falei dele.


Um velho provérbio diz que quem tem um amigo tem duas almas. Minha segunda alma era Odylo Costa, filho. Nossa amizade não parou no tempo. Odylo vive comigo, é minha referência constante. Sua figura suave, o homem inteligente, que sabia até mesmo esconder a mordacidade e a ironia com uma maneira delicada de expressar pensamentos que se podia considerar indelicados. Suas causas, a proteção do Estado aos meninos e às pessoas com deficiência. Seu conhecimento de todas as coisas. Seu prazer da vida, seu riso largo, generoso. Seu amor total por Nazareth.


Odylo de Nazareth. Parece nome de santo. E é.


O Maranhão imortalizou esse amor no nome de uma rua antiga, Rua de Nazaré, que hoje é: Rua de Nazareth e Odylo.