Rogel Samuel

Não sei quantas vezes já me referi ao fato de que Baudelaire encheu seu poema de plurais, bosques, catedrais, órgãos, corações, gritos, tumultos, sombras, insultos, e mais. São temas baudelairianos, da visão exótica de seu mundo ”despoetizado”, Baudelaire foi primeiro poeta de um mundo sem “beleza”, desprovido de glamour romântico, por isso mesmo um poeta maldito, um poeta sem poesia, vivendo em quartos de terno luto, homem das grandes cidades modernas, e seus guetos, suas mazelas, suas telas negras, seus precipícios interiores, decadentes, um poema – como já escrevi, - ecológico, maldito, sonoro – onde os bosques têm rugidos como os grandes órgãos das catedrais, bosques em luto, em antigos choros, de duendes de fantasmas de fadas de demônios de flores das grandes árvores da montanha, os bosques se opõem aos oceanos - Baudelaire odeia os oceanos românticos, os tumultos da alma oceânica, riso amargo, sombras insultos, noite escura, sem estrelas, infinito negro, insondável, precipício, e o tradutor genial nos dá um verso extraordinário: "Porém as trevas são elas próprias as telas", telas do além dos rostos familiares, num bosque das lembranças estreladas em trevas.

LXXXII - Obsessão

Bosques, encheis de susto como as catedrais,
Como os órgãos rugis; e em corações malditos,
Quartos de terno luto e choros ancestrais,
Todos sentem ecoar vossos fúnebres gritos.
Eu te odeio, oceano! e com os teus tumultos,
Já que és igual a mim! Pois este riso amargo
Do homem a soluçar, todo sombras e insultos,
Eu o escuto no riso enorme do mar largo.
Como serias bela, ó noite sem estrelas,
Que os astros falam sempre claro em sua luz!
Busco o infinito negro e os precipícios nus!
Porém as trevas são elas próprias as telas,
Em que surgem, a vir de meu olho, aos milhares,
Seres vindos do além de rostos familiares.

BAUDELAIRE, Charles. As Flores do Mal. São Paulo: Círculo do Livro, 1995. Tradução, posfácios e notas de Jamil Almansur Haddad.