Santos-SP, Brasil. Minha cidade natal. Ela raramente recebe lendas vivas e a noite do dia 17 de novembro de 2010 foi para entrar para a história. Na cidade, ninguém menos do que Milo Manara. Lenda vida dos quadrinhos. E o SOC! estava lá.
Antes de mais nada, quero agradecer à Conrad Editora e à Livraria Realejo por tornar essa noite possível.
Manara participaria de uma palestra/bate-papo e depois uma sessão de autógrafos. No SESC, local do evento, você tinha que chegar com uma hora de antecedência para retirar uma senha. Cheguei com uma hora e quinze minutos de antecedência e já tinha uma certa fila por lá. Nada monstruoso, mas tinha. E como primeiro da fila estava Paulo Siqueira, desenhista da Marvel, atualmente fazendo o Homem-Aranha.
Mal cheguei e a fila já ia crescendo. Até que começaram a distribuir as senhas e a coisa andou rápido. Fui para as poltrona da biblioteca do SESC e fiquei batendo um papo com o Paulo Siqueira e não deu dez minutos: a lenda viva entrou com o staff da Conrad pela porta da frente do local, andando calmamente. A galera que estava ali, onde ele passou do lado, paralisou. Passado o susto, um amigo jornalista, funcionário de um jornal local, disse que passou a tarde com ele, entrevistando-o. Ele contou que Manara estava de mau humor, decorrente de locais por onde passou e ficou em São Paulo e Rio de Janeiro com um excessivo e congelante ar condicionado que o debilitou um pouco. Creio que todo o cuidado para deixá-lo confortável sofreu um tiquinho de exagero.
Nem percebemos, mas MUITA gente já estava no pé das escadas do teatro do SESC. Resolvemos ir para lá e tinha gente de tudo quanto é canto. De São Paulo, por exemplo, tinha o André Morelli, da revista Mundo dos Super-Heróis. Sempre tem aquele bate-papo pré-evento entre o público, gente que se conhece há milênios, expectativa alta. Mas dando uma olhada ao redor, constatei que o público tinha uma faixa etária premodinante que começava em média nos 25 anos pra cima. Vi senhores, senhoras, pessoal na casa dos trinta, tinha quase tudo. Adolescente? Quase nenhum. E o mais inesperado (pra mim, pelo menos); muitas mulheres.
A Conrad tinha uma bancada lá vendendo as obras do grande mestre. Algumas coisas mais em conta, outras mais salgadas, mas não importava, era muita gente querendo comprar e mal dava pra chegar na bancada de tanta gente em volta.
Depois de um atraso de meia-hora, as escadarias que levam ao teatro foram abertas. Corre-corre pelo melhor lugar. Na frente? Já era, não consegui ficar. Fiquei acho, na quarta, quinta fila de poltronas. Em pouco tempo o lugar foi preenchido por centenas de pessoas e não demorou muito para começar o evento.
A iluminação era pouca, de modo que ficava difícil tirar alguma foto boa – ao menos com a singela câmera à minha disposição aceito doações para angariar uma melhor, hehe – e oscilava muito. A tentativa era dar destaque ao palco e criar um clima mais intimista, creio eu. Havia quatro poltronas no palco e elas foram ocupadas, da esquerda para a direita por uma intérprete de italiano, Manara, um jornalista e o dono da Livraria Realejo, José Luiz Tahan (tem como sócio o roteirista José Roberto Torero).
Feitas as apresentações, com uma efusiva salva de palmas, Manara começou exatamente pelo começo de sua carreira. Ele disse, modestamente, que ele não tinha e não tem nada de excepcional, sendo que teve apenas “muita, muita sorte” com seus trabalhos. Primeiro, ele disse que tentou ingressar no Belas Artes em seu país e “bombou”.
Alguém aí imagina Manara sendo reprovado em uma avaliação artística?
Enfim, o teste consistia em desenhar um vaso com uma flor dentro e ele disse que deve ter feito alguma coisa abstrata demais para os padrões da academia e isso é apenas um palpite dele, pois nunca soube o motivo de reprovação. E acrescentou que, se somos reprovados ou sofremos um revés na busca por algo, não podemos desistir de nossos objetivos.
Foi então que ele contou que ingressou em Arquitetura na faculdade. Para pagar seus estudos, começou a fazer ilustrações de diversos tipos e que o seu forte havia se tornado ilustrações políticas, com um forte caráter de protesto.
Com diversos trabalhos, ele já tinha uma certa reputação local, mas tudo mudou quando um dia, o lendário cineasta Frederico Fellini ligou para ele após Manara ter feito uma HQ de quatro páginas em sua homenagem. Manara contou que tinha visto uma entrevista de Fellini tempos antes de conceber tal HQ e que nela, Fellini confesava que o “Fim” ao término de cada filme o magoava. As duas horas de sonho tinham ido embora e Fellini tinha que voltar à realidade. Tanto é que, quando começou a fazer filmes, Fellini se recusava a colocar “Fim” ao término de suas obras. E na HQ de Manara, no pé do último quadro, Manara escrevera: “Sem Fim”. Aquilo tocou o grande mestre cineasta – além de ele ter gostado da história – e foi o motivo da ligação.
Para infelicidade momentânea de Manara, ele não estava em casa. O artista contou que quando soube, teve vontade de se jogar debaixo de um caminhão. Mas não demorou muito e o contato foi feito e aí foi o começo de uma das maiores parcerias culturais que a humanidade já viu, tendo dela saído a obra em quadrinhos Viagem a Tulum, escrita por Fellini, desenhada por Manara e publicada no Brasil em 1992 pela editora Globo.
Neste momento da palestra um projetor foi acionado ao lado dos presentes no palco onde reproduções feitas pelo próprio Manara foram exibidas e o bate-papo passou a se focar sobre as obras do artista, em ordem cronológica. Devido aos anos e anos de colaboração entre ele e Fellini, boa parte de suas informações eram daquela fase. Manara explicou detalhadamente o processo dos principais trabalhos feitos com seu conterrâneo parceiro. O mais interessante, creio eu, foi sobre Viagem a Tulum, o qual foi originalmente concebido para ser um filme, mas que Fellini, abandonando a ideia inicial o transformou em uma HQ que teve Manara como ilustrador, evidentemente. Para o projeto inicial de Viagem a Tulum Fellini fez uma road trip pelos lugares onde a história se passaria e em várias ocasiões, receberam telefonemas ameaçadores para parar de produzir a história.
Na ocasião, contou Manara, Fellini estava um pouco perturbado. Porém, ainda mais assustado estava o escritor e antropólogo Carlos Castañeda (1925?-1998), que ajudava Fellini com o projeto. Segundo Manara, o cineasta italiano era um leitor fiel da obra de Castañeda, que foi um ícone da geração paz, amor e drogas dos anos 70. Esse escritor manteve a segunda metade de sua vida muito reservada, sendo que no final dela, praticamente desapareceu da sociedade. Isso criou e ainda fomenta inúmeros boatos e invenções a respeito de Castañeda: de sua estabilidade mental à acusação ao uso de drogas. Por 15 anos, Fellini tentou encontrar Castañeda e um dia recebeu uma ligação dele, sendo que Fellini nunca descobriu como Castañeda o achou.
Essa reunião ocorreu em 1985, em Roma, e, tão rápido como surgiu, Castañeda voltou a desaparecer logo após o término do projeto, deixando para trás um diretor assustado e atônito.
As tais ligações, parecem (pois nada nunca foi confirmado) vinha dos feiticeiros toltecas, povo misterioso do México (Tulum fica lá) e que teria ligações com Castañeda. Ironicamente, houve momentos também que Fellini recebeu ligações das mesmas pessoas, incentivando a obra, pois “agora estava ficando bom”. Para nós da plateia, da maneira que Manara contava o caso, não tinha como não ficar engraçado e os risos acabaram sendo inevitáveis.
Isto foi sobre UMA das obras feitas pela dupla e minhas palavras jamais poderão fazer justiça às palavras e aos detalhes que Manara contou no SESC a acerca de Viagem a Tulum. Imagine agora imagine que ele foi igualmente cuidadoso com as principais obras feitas em parceria com Fellini. Foi uma verdadeira aula de quadrinhos e produção artística.
Passado a limpo a parceria dele com Fellini, Manara começou a falar com igual entusiasmo sobre suas obras feitas apenas por ele. Só aí que percebi uma coisa: Manara entendia muito bem o português que lhe era falado. A intérprete estava lá só para traduzir para nós o que ele falava. Fiquei entusiasmado de poder falar com ele (embora eu não fosse entender nada do que ele fosse me dizer, eu imaginava, caso tivesse a chance de papear um tiquinho).
E as explanações sobre suas obras mais recentes e sobre como está sua passagem pelo Brasil ainda durou bastante tempo. Manara até contou que o desenho de suas mulheres com certeza sofrerá algumas alterações após conhecer as mulheres brasileiras.
Ele também revelou seu próximo trabalho assim que retornar à Itália. Trata-se da história verídica de Anna Bianchini, modelo do grande artista da renascença Caravaggio. Ela posava para ele, ajudando em suas obras. Em um determinado momento, ela foi morta e a história de Manara contará sobre como era a relação profissional dos dois e como a morte dela afetou as obras posteriores do artista. Ele disse que é uma história dramática e trágica, mas que haverá alguns momentos de humor devido a certas características da sociedade italiana da época.
Terminado o bate-papo, foi anunciado que Manara faria finalmente a sessão de autógrafos, mas que ele não desenharia nada devido a não estar em boas condições de saúde, consequência de um início de resfriado e logo depois foi confirmado o problema com ar condicionado sofrido nos últimos dias. Foi então que ele entrou no meio e disse que ele costuma desenhar e que é hábito seu fazer coisas detalhadas e que ele não estava bem o suficiente para realizar uma maratona dessas no momento. Ele pediu sinceras e emocionantes desculpas.
Aí entrei em pânico, pois não tinha nada dele (eu sei, um erro imperdoável). Porém, compreendendo, tratei de trabalhar meu psicológico para aceitar. E, na boa? Eram 22:30hs quando terminou o bate-papo e pela quantidade de gente ali, se Manara fizesse um desenho autografado pra cada, ele sairia dali no natal.
Enfim, ele foi ovacionado de pé. Alguns já corriam para fora do teatro para fazer fila na mesa de autógrafos. A fila era insana e tinha gente com pena dele devido à sua avançada idade (ele está com 65 anos), então o público compreendeu perfeitamente.
Chegando lá, a fila estava andando rápido, pois ele fazia uma dedicatória e assinava. Aproveitei pra ir na bancada da Conrad e comprei o volume 1 de Clic. Pronto, erro sanado, já tinha algo. Mas em um dado momento, um rapaz mostrou a ele seus desenhos. As obras do rapaz o empolgou e ele ás vezes chegava a fazer um esboço rápido dependendo do número de obras que lhe davam para autografar (tinha gente levando quase dez obras pra ele assinar!).
Aí endoidei só de imaginar a possibilidade de um esboço rápido. Lembrei que estava com meu sketchbook e imaginei que, entregando a ele um desses e ainda mais um fudê (caneta japonesa que simula um pincel – não tenha a mente poluída, hein?), ele fosse se empolgar para fazer um esbocinho rápido. Quando cheguei nele, disse que sabia e entendia que ele não estava desenhando, mas que já ficava feliz com um autógrafo apenas. Por um momento, ele olhou o sketchbook, olhou para o fudê em sua mão e vi claramente que ele pensou algo “como não desenhar com tal material disponível?”. Me ferrei, pois alguém da Conrad (acho que era, não tenho certeza) deve ter se assustado com o que entreguei e falou pra ele que era apenas um autógrafo. Ele ficou momentaneamente confuso e apenas autografou mesmo, sem desenho algum e de forma extremamente simpática (e eu entendi!) disse: “Mantenha essa folha limpa no sketchbook. Na próxima vez, com certeza!”
Depois de tal declaração feita com tanto carinho, nem me importava mais ter um desenho ou não, só assinatura dele quase me fez chorar. Mas enfim, tudo foi tão rápido que nem consegui tirar foto com ele.
E eu saí de lá com alguns amigos, satisfeito e feliz. Foi uma das noites mais mágicas da minha vida.
Escrito por Shazam!.
Veja mais fotos do evento e algumas ilustrações feitas por Manara quando de sua parceria com Fellini na página do SOC! no Facebook."
(http://soctumpow.com/veja-como-foi-a-palestra-de-manara-em-santos)
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