ELMAR CARVALHO

 

O conjunto residencial Monte Castelo acabara de ser construído. Era constituído de casas boas, destinadas à classe média alta, que florescia na capital. Para lá se mudaram médicos, bem sucedidos advogados, altos funcionários públicos, executivos, etc. Alguns estavam iniciando a vida conjugal, jovens maridos e mulheres, porém outros casais já tinham filhos adolescentes ou já rapazes e moças. Era composto de quatro quarteirões, de vinte casas cada um. Em pouco tempo, surgiram comentários de que um ladrão fora visto no quintal de algumas casas. Dizia-se que fora visto um rosto, pelo vidro de janelas dos banheiros. Por tal motivo, alguns acharam que o intruso não seria ladrão, mas um voyeur. Diante disso, foi feita uma reunião com os moradores, com o objetivo de que fosse contratada uma equipe de vigilantes, para patrulhamento das poucas ruas do conjunto. Dias depois, dois vigilantes motorizados percorriam as ruas do conjunto habitacional.

 

Por alguns meses não mais se ouviu falar em ladrão ou voyeur . Os moradores entenderam que o caso fora resolvido a contento. Porém uma adolescente deu um grito pavoroso, quando viu um rosto masculino a contemplá-la da janela do banheiro. Uma jovem senhora, que gostava de tomar banho na ducha do quintal, à noite, desconfiou que estava sendo observada, e parou com esses banhos ao ar livre. Os boatos voltaram a circular. Alguns puseram cortina na janela dos banheiros. Mas uma moça contou para os seus pais que notara um observador à janela de seu quarto. Daí houve a conclusão de que esse maníaco observava também pelas janelas dos dormitórios, em suas excursões noturnas. Os moradores, sobretudo os homens, voltaram a discutir o caso entre si e com a equipe de vigilância. Os vigilantes garantiram não ter visto nenhum estranho em atitude suspeita, e muito menos menos a pular os muros das casas. Prometeram redobrar os cuidados.

 

Entre os moradores, havia o Afonso Gonçalves que tinha três filhas adolescentes, no apogeu da beleza, sendo difícil escolher-se qual delas era a mais bonita. Duas eram morenas, de cabelos ondulados, castanhos, e olhos verdes. A mais nova puxara à mãe, que ainda ostentava sua beleza madura; era loura, de olhos azuis. Afonso era fazendeiro, e resolvera morar na cidade, por causa dos estudos das filhas. Passava dias na fazenda e dias na casa da cidade. Sua “cachaça” era uma caçada. Gostava de caçar sozinho, imerso na solidão e no silêncio da noite na floresta, trepado numa árvore, a ruminar seus pensamentos, a esperar os bichos, que nem sempre apareciam. Quando soube que uma das filhas vira o malfazejo, que andara espionando suas janelas, decidiu que, durante alguns meses, no lugar de esperar suas caças em sua fazenda, iria esperar esse sujeito ordinário no quintal de sua casa. Recomendou que sua família guardasse absoluto silêncio de sua empreitada. Noite após noite, pacientemente, nos dias em que não estava na fazenda, passou a esperar o espião de mulher. Ficava à espreita, na pequena área de serviço, que havia no quintal. Por várias semanas, nada apareceu. Mas ele era obstinado, perseverante, e o ato de estar à espreita, à espera, fazia parte do ritual de suas caçadas. Uma noite percebeu um vulto e um leve barulho. O quintal estava na penumbra, até para atrair o curiador de mulheres e filhas alheias. O homem era macio como um felino. Trajava roupa escura. Esgueirou-se furtivamente, pisando de leve, muito lentamente, até a janela do quarto de uma das moças. Afonso era considerado um ótimo atirador. Apontou o rifle e apertou o gatilho. Incontinenti, o homem caiu. Ouviu-se seu grito de dor e seus gemidos. Afonso não lhe quis matar. Atirou contra suas coxas. As filhas de Afonso chamaram os vigilantes e a polícia. Foram adotadas as providências de praxe. Verificou-se que o ferido usava um capuz negro como suas vestes. Logo constatou-se que ele era o ginecologista Irineu Ferraz, considerado um dos melhores de Natal. Foi um escândalo. Os jornais, as rádios e as televisões noticiaram o fato com estardalhaço.

 

A mulher do médico, transtornada com o rumoroso fato, terminou revelando coisas que a família mantinha em absoluto sigilo. Ela notara algumas atitudes suspeitas e esquisitices do marido. Havia um armário que ele não permitia que ninguém o abrisse. Dizia que guardava aparelhos e instrumentos que usava em sua profissão. Certa feita, quando fora visitada por sua bela irmã, notou o médico muito perto do banheiro, como se estivesse a bisbilhotar o banho da moça. Mas ele se curvou, como se estivesse a amarrar os cadarços do sapato. Tinha ouvido comentários de conhecidos, no tempo do namoro, de que ele, ainda menino, costumava bolinar as empregadas de sua casa, e que algumas deixaram o emprego por isso. Não dera importância a esses fatos e comentários na época, mas agora estava fazendo as devidas ligações. Comentou, ainda, que às vezes parecia dormir muito profundamente, e agora estava a achar que ele a dopava para fazer as suas aventuras noturnas, mistura explosiva de adrenalina e libido. Revelou que ele tinha o costume de comprar revistas de mulheres nuas. Por fim, em último desabafo, falou que achava que ele fora ser ginecologista não por vocação, por amor ao mister de curar, mas por ser um maníaco, um tarado. Após sair do hospital, dois ou três dias depois, o médico Irineu Ferraz e sua bela mulher foram embora, sem despedida e sem deixar endereço. Alguns fofoqueiros disseram que foram morar na cidade de São Paulo, na esperança de que o episódio rumoroso, de que ele fora protagonista, fosse esquecido. Era uma viagem sem volta.