O último livro de Maria Azenha
Por Luís Serrano
A inclusão no título da palavra "espelhos" alerta-nos imediatamente para a simetria que é toda a vida humana, reflexão no sentido óptico, metáfora do "outro" que reflectimos e nos reflecte. Apesar da complexidade da vida somos confrontados com uma tendência para a expressão dessa complexidade num sistema de base 2, a base utilizada pelos computadores: vida/morte, amor/ódio, eu/tu, bonito/feio, real/virtual, etc, etc., ou seja o que o espelho mostra e o que o espelho esconde.
 
 
Há uma pergunta que me parece plena de significado no poema "Um biombo de açucenas para os espelhos" e que é esta (p.23) "porque nascemos entre mil espelhos?" Nem M. Azenha tem resposta nem eu, mas porventura, estes mil espelhos repetem à saciedade uma imagem que é a nossa e que nos repetimos nos outros. Ou seja, qualquer outro é sempre um "alter-ego" daquele que empresta a sua realidade. Ou ainda, os mil espelhos funcionam como "pontos de vista" que correspondem aos vários narradores do romance polifónico.
 
 
Eu diria que há nesta obra dois objectivos principais. O primeiro aparece-nos logo no 1º poema (p.7) e é, de algum modo, explicitado nos dois últimos versos
 

abrir com toda a força um buraco nos espelhos"
 
Abrir um buraco nos espelhos para quê? Para saber o que está por trás deles. Será Deus? Que demiurgo manipula as marionetas que, se calhar, nós somos? Em qualquer dos casos, abrir um buraco nos espelhos corresponde ainda a um desejo de conhecimento.
 
 
O segundo objectivo parece estar contido no último poema, "explicação dos espelhos" (p. 43), logo no 1º verso, "e multipliquem os espelhos que cantam" pois quanto maior for o seu número maior será o número daqueles que constituirão outros tantos alter-ego da autora.
 
 
Ambos os projectos se integram em "um projecto de água" (p.7) que se abre em "lugares novos espantados" (p.7). A água assume, como se sabe, carácter matricial e é um símbolo de pureza. Não é por acaso que esta palavra é das mais frequentes na obra, quer sob esta forma, quer escondida em "mar" e em "chuva".
 
 
A linguagem de Maria Azenha é uma linguagem simples com muitas pausas, deixando, pois, que o silêncio adquira uma grande importância nesta poesia. Sem pausas não há música e é aqui que eu acho que Maria Azenha devia investir mais em próximo livro.
 
 
Algumas imagens são tão belas que vale a pena citá-las. Por exemplo: "é inverno frio // neva uma rosa" (p.15).
 
 
No poema da p. 16 há três versos que nos fazem lembrar uma frase célebre de Picasso: "eu não procuro, eu encontro". Os três versos são estes:
 

dou-me apenas ao ofício das trevas
de os revelar em pedaços de argila"
 
Isto é, ao poeta cabe desvelar a realidade sem qualquer preocupação de explicar. Que há, de facto, uma preocupação de enfatizar a imagem em detrimento do som (visão contra audição) pode deduzir-se, por exemplo da associação de "espelhos" com "olhos", como se pode ver no poema da p.21: "os teus olhos / são ainda / mil / espelhos/.
 
 
Trata-se de uma poesia cujo lirismo, ora nos empurra para a memória da infância (há alusões discretas a esse paraíso perdido), ora acorda em nós o tom melancólico mais próprio da maturidade.
Permita-se-me que, a concluir transcreva o poema "sobre a metamorfose das casas" (p.33), seguramente um dos mais belos deste livro:
 
 
 
abrem portadas em Março
ao primeiro calor das árvores.
umas
em flor
outras rendilhadas de andorinhas
 
derramam
nos
passeios
 
algumas pétalas de linho.
 
aves de silêncio e água limpa