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Para se ser feliz até um certo ponto é preciso ter-se sofrido até esse mesmo ponto.
Edgar Allan Poe
Paula estava impaciente. A roupa nova, sobre a cama, esperava o momento certo para ser vestida. A expectativa e o nervosismo pelo início da festa eram contagiantes. Seus pais já haviam chamado a sua atenção várias vezes. Paula, no entanto, não conseguia se controlar. “Os adultos não compreendem que só se faz dez anos uma vez na vida”; pensava.
Há semanas esperava por esse dia. Pensou e repassou cada detalhe, do bolo ao vestido. Os pais não haviam medido esforços, e nem dinheiro, para lhe dar a festa de aniversário com que tanto sonhara.
Quando, finalmente, a hora estava-se aproximando, foi para o quarto e, com muito cuidado, vestiu a roupa nova: um lindo vestido vermelho, com laços brancos, meias brancas e sapatos, igualmente brancos, com uma fivela dourada. Olhando-se com atenção no grande espelho, que havia na parede ao lado da cama, gostou do que viu. Com uma escova penteou os cabelos até que ficassem brilhando.
No horário combinado para o início da festa, postou-se perto da porta. Sua mãe, que ainda estava envolvida com os últimos preparativos, sorriu, lançando-lhe um olhar de aprovação. Paula não quis sentar, pois tinha medo de amarrotar o vestido novo. Ficou, então, em pé e esperou.
Após ter-se passado mais de uma hora, ela ainda estava esperando. Os pais, preocupados, tentaram tirá-la da frente da porta, mas ela, teimosa, insistiu em permanecer de pé, esperando. Tinha certeza que em breve seus amigos chegariam. Duas horas mais tarde, em meio a lágrimas que não pôde mais reprimir, fechou a porta. O bolo permaneceu sobre a mesa, intocado. O vestido novo foi jogado com raiva num canto do quarto. Paula, sem conseguir entender o que havia acontecido, chorou durante toda a noite prometendo-se que nunca mais iria permitir que algo semelhante voltasse a lhe acontecer.
Já haviam se passado, desde esse dia, quase trinta anos, mas a mágoa, ainda presente, a impedia de esquecer. Uma história antiga e triste que acabou deixando as suas marcas. E mesmo que hoje Paula fosse uma pessoa totalmente diferente, ela ainda continuava evitando qualquer espécie de comemoração quando o dia do seu aniversário se aproximava. Na tentativa de solucionar esse problema já havia feito muita terapia, inclusive apelou para todo o tipo de tratamento alternativo – cristais, passes energéticos, reiki e até sessões de desobesessão. Afinal, pensava ela, “Agora sou uma mulher adulta, não é mais possível continuar prisioneira desses traumas infantis”. Entretanto, infelizmente, nada até agora tinha surtido efeito.
Todo o ano, quando seu aniversário estava próximo, desenvolvia alguns sintomas já bem familiares daqueles que a conheciam. Em dias alternados, passava de irritadiça e nervosa para calada e deprimida. Era um período difícil para todos. E quando o dia D inevitavelmente chegava, Paula se valia de todos os artifícios para burlar os constrangedores cumprimentos. E em todas as ocasiões em que a fuga havia sido impossível o resultado sempre fora o mesmo: uma mistura horrível de constrangimento e terror com a possibilidade de novamente sentir o gosto da humilhação e do desprezo.
A última gota d’água, do que todos se acostumaram a chamar de “o trauma de Paula”, foi quando na noite anterior ao seu último aniversário ela resolveu ingerir um sonífero muito forte. Os amigos mais próximos ficaram tão assustados que pensaram em chamar a polícia e os bombeiros, pois, talvez fosse preciso pôr abaixo a porta do apartamento, já que o telefone tocava e ninguém respondia. Isso só não ocorreu porque, depois de muito insistirem, Paula, finalmente, dignou-se a atender e com a voz ainda grogue, conseguiu explicar que tudo estava bem e que apenas havia dormido um “pouco demais”. De qualquer maneira, essa situação forçou o seu retorno para a terapia.
Por esse motivo, nesse ano ela estava disposta a mudar de forma radical a sua forma de agir. Não sabia se tinha sido a terapia, a insistência dos amigos ou o fato de estar completando quarenta anos, mas uma manhã simplesmente acordou decidida a exorcizar esses temores infantis e absurdos. Iria, pela primeira vez em trinta anos, comemorar o seu aniversário.
Para tornar o exorcismo completo resolveu se envolver com todos os detalhes da festa: lista de convidados, local, se seria buffet ou coquetel. E deixando-se levar pela intuição também decidiu que todos deveriam vir fantasiados. Foram semanas febris. Um corre-corre de matar de inveja qualquer maratonista olímpico. Quando algum pensamento negativo passava a assombrá-la, ela recorria aos amigos, ao terapeuta e até a simpatias especiais para afugentar qualquer ideia que pudesse impedi-la de ir adiante com o seu plano.
Quando, finalmente, o grande dia chegou, ela estava à beira de um ataque de nervos. Quis tomar um calmante, mas foi impedida por amigos. Não queriam correr o risco de que se repetisse a história da “bela adormecida”. Assim, nervosa, mas bem desperta, vestiu-se com muito cuidado (sua fantasia era de cigana, toda em vermelho, com alguns laços brancos!) e sozinha, foi para a sua festa de aniversário.
Como há trinta anos ela se postou na entrada do salão de festas e esperou. A cada minuto que passava mais ansiosa e angustiada se sentia. As cenas daquele longínquo aniversário a assombravam. Era novamente a menina de dez anos. Toda a humilhação e tristeza voltaram com força total e ela teve de recorrer a seu já escasso autocontrole para não deixar que o medo a dominasse. Lágrimas reprimidas começaram a escorrer dos seus olhos, ameaçando a sua maquiagem. O enorme bolo de aniversário, colocado no meio do salão, tornou-se – assim como aquele outro – testemunha silenciosa do seu sofrimento. “Tudo igual, tudo igual!”, repetia Paula, em silêncio. “Como fui tola!”, lamentava-se.
De repente, em meio às lágrimas, viu alguns carros se aproximando. E, ao contrário do que ela temia, paravam. Figuras estranhas começaram a sair deles: piratas, bailarinas, pierrôs e até mesmo diversos palhaços pessimamente maquiados. Na confusão compreendeu que, finalmente, seus fantasmas não mais a assombrariam. Dessa vez, o bolo não ficaria intocado. Sorrindo, deixou-se abraçar e beijar por um animado Elvis Presley que, na alegria do momento, sabia apenas repetir, “Feliz aniversário, Paula!”.