(Miguel Carqueija)

Este conto foi filmado em 2004 pela Arte Urbana de Ribeirão Preto (produção de Fernando Souza e direção de Camilo Calandreli) e o curta resultante pode ser assistido no youtube.

O TESOURO DE DONA MIRTES


                                                                       
     Dona Mirtes Azambuja é uma senhora viúva e aposentada, de 65 anos, gordinha, baixa, cabelos branquinhos, passos miúdos, que vive circulando pelas ruazinhas de seu bairro, fazendo pequenas compras pelos armazéns, vendinhas e botecos, nunca entrando em supermercados e outros locais que tenham caixas registradoras bloqueando a saída. E nunca viaja e nem se demora muito fora de casa, onde mora sozinha.
     Dona Mirtes veste-se com elegante simplicidade, nunca põe calças compridas mas não dispensa um chapeuzinho discreto a cobrir parte de suas cãs. Carrega sempre uma grande bolsa a tiracolo e muitas vezes, pelos becos e vielas estreitas, foi vista conversando com ela. E fala coisas assim: "Nós já vamos para casa, tesouro. Não vamos nos demorar na rua." Ou abre ligeiramente a bolsa, olha para dentro e diz: "Calma, meu tesouro. Nós já estamos chegando." Só que nunca tira nada de lá, só de uma bolsinha bem menor. E como ela não tem propriamente amigos, nem parentes conhecidos, ninguém sabe o que ela carrega com tanto zelo, por toda a parte.
     Assim é que um dia dois bandidos, já bem intrigados com aquele mistério – que chamara a atenção de várias pessoas – resolveram assaltá-la. O ataque se deu numa esquina deserta, já no começo da noite, num dos passeios que ela costumava dar em noites quentes. Os dois larápios a cercaram e a arrastaram para um beco imundo, tapando-lhe a boca para que ela não gritasse.
     Logo em seguida, porém, ouviram-se gritos desesperados, lancinantes... só que masculinos, e vindos do beco. Ora, normalmente ninguém sai de sua casa à noite para socorrer quem grite na rua, logo ninguém apareceu e os gritos cessaram sem demora. E a figura atarracada de Dona Mirtes, com a roupa ligeiramente desarrumada, emergiu da viela, conversando como de hábito com sua bolsa:
     — Viu só, meu tesouro? Nem num bairro residencial como o nosso se pode mais passear em segurança! E nem é muito tarde! Vamos para casa, vamos tomar um chá de camomila!
     E no dia seguinte a polícia foi chamada ao beco para recolher dois cadáveres horrivelmente dilacerados...