(Miguel Carqueija)

Um tema clássico, de Edgar Allan Poe até Arina Tanemura

O TEMA DO DUPLO NA LITERATURA, CINEMA E QUADRINHOS


    O “duplo”, ou “outro eu”, é um assunto clássico da ficção, tendo sido abordado por grandes autores como o norte-americano Edgar Allan Poe (1809-1849). O duplo é um personagem semelhante ao protagonista — gêmeo, sósia ou mesmo um desdobramento da personalidade original, não raro penetrando no viés sobrenatural.
    Poe escreveu, a esse respeito, um conto terrificante intitulado “William Wilson”. O protagonista é um sujeito “de maus bofes”, desde os tempos de estudante, quando gostava de tiranizar os colegas. Um deles, porém, lhe fazia frente: um estudante que ostentava o mesmo nome e que, em razão de alguma doença, trazia o rosto oculto por máscara. Sua voz era rouca, abafada.
    Saindo do colégio, William Wilson não queria nada com a vida séria, mas apenas se dar bem. Entretanto, no primeiro golpe que tentou, o outro apareceu e sabotou os seus esforços. E isso continuou a acontecer, através de vários países. A narrativa, opressa e tétrica, vai num crescendo de suspense e horror até o confronto final entre William Wilson e o seu duplo.
    Algo parecido ocorre naquele filme “O homem que perseguia a si mesmo” (1970), com Roger Moore, cujo personagem persegue um duplo que o antecede nos locais onde freqüenta, usurpando a sua personalidade.
    O autor britânico Robert Louis Stevenson (1850-1894), em “The strange case of Dr. Jekyll and Mr Hyde” (ou seja, “O medico e o monstro”), fala da transformação do próprio corpo. O cientista do romance inventa uma droga que desdobra a sua personalidade, alternando a normal com a psicótica; quando esta surge, a aparência física se modifica. Dizem que Stan Lee buscou inspiração nessa novela clássica para criar o Dr. Banner e seu alter-ego, o “Incrível Hulk”.
    Claro está que o tema pode também ser utilizado dentro do plano natural. Existe um delicioso filme de Walt Disney, “The parent trap” (“Armadilha para pais”, 1960) onde duas gêmeas de 13 anos (interpretadas pela maravilhosa Hayley Mills) que nem se conheciam descobrem-se mutuamente num acampamento de férias e vêm a saber que os seus pais são divorciados e simplesmente uma delas foi criada pela mãe, a outra pelo pai. Resolvidas a reconciliar os pais, elas trocam uma com a outra.
    Está nas bancas o quinto volume de “The gentlemen’s Alliance” (Ed. Panini), mangá da genial Arina Tanemura, cujo cerne é o tema do duplo. A gentil, simples, espontânea e amorosa Haine Otomiya enamora-se pelo Presidente do Conselho Estudantil da Academia Imperial, Shizumasa Touguu, sem saber que há dois Shizumasas. O verdadeiro na maior parte do tempo não freqüenta o colégio por ter a saúde frágil; em seu lugar vai um sósia, tratado como uma espécie de escravo ou prisioneiro. Daí a diferença de humor entre os dois, fenômeno que, por não lhe conhecer a causa, desconcerta Haine.
    Neste quinto volume, a garota por fim se aproxima da verdade sobre o seu amado. Apesar do drama e do mistério que perpassam pela trama, há momentos de delicioso humor refinado. Por exemplo, quando Haine e o Shizumasa falso vão a uma lanchonete e ele, acostumado ao luxo e aos fricotes da riqueza, espanta-se ao ver a menina lidar com um sanduíche: “Isto se come com a mão?” Outro quadro impagável é quando Haine, procurada pelos quatro membros do Conselho Estudantil, todos diferentes entre si, reflete: “Não sei como quatro pessoas tão sem foco conseguiram chegar aqui juntas.” É preciso ver a cena para sentir a sua graça.
    Acredito que Arina Tanemura, neste mangá originalmente editado no Japão entre 2004 e 2008, trouxe um significativo acréscimo ao tema do duplo, o outro eu ou alter-ego.