O sol nas feridas
Em: 30/04/2012, às 20H39
Henrique Marques-Samyn
Ronaldo Cagiano. O sol nas feridas. Dobra editorial, 2011.
Ronaldo Cagiano é uma figura atípica na cena literária contemporânea, não apenas por se dedicar a diversos gêneros literários, mas também por praticar de modo consistente a crítica, numa época em que escritores raramente leem uns aos outros − e, quanto o fazem, corriqueiramente se limitam à superficial troca de elogios, rechaçando leituras mais aprofundadas. Para além disso, e especificamente no que tange à poesia, Ronaldo Cagiano também se diferencia da maior parte dos autores coevos porque, em oposição aos inócuos jogos de palavras e aos anacrônicos vanguardismos que proliferam na atualidade, cultiva um lirismo de tom francamente subjetivista e que não rechaça a tematização de motivos políticos. Por tudo isso, a publicação de O sol nas feridas já seria algo digno de nota.
Este novo poemário não se destaca, entretanto, apenas pelo que apresenta de invulgar; a par disso, encerra qualidades que o situam num patamar bastante superior à média do que é publicado atualmente no Brasil. Ronaldo Cagiano é um poeta que, embora domine as técnicas literárias, não faz delas um fim em si mesmo. Sua poesia constitui, por conseguinte, um modo de apreensão do real − como reconhece ao escrever, em Insondável: “No duelo com a vida / a literatura concedeu-me as armas”; ou, em Diante de um quadro de Di Carrara: “Há poesia em tudo, / porque a nudez das coisas / traz em si uma raiz serena / de cumplicidade com o mundo e seu destino”. E o que demonstra a eficácia com que maneja esse instrumento é a fatura de seu verso, de que estão ausentes contingências e maneirismos.
Entre os melhores textos do livro, destaquem-se Despedida, pungente rememoração lírica da morte paterna − “Como amêndoas murchas, / seus olhos não interceptaram / a flecha de cicuta / pelas costas // não era apenas o seu fim, / mas a derradeira extinção de todas as respostas” − e Das coisas e seu ritmo, poema que revisita o tradicional temário em torno do tempo e da finitude − “Há tempo demais nos relógios da cidade: / eternidade com seus cupins de aço / varando nossas entranhas / para o triunfo do imponderável. // [...] // Pedra dentro do tempo, / a morte, como a mó, / impõe o ritmo das coisas : / pacientemente nos esfarinha, / grãos de nada / num pomar de bactérias”. Há alguns poucos momentos em que o sentimento do autor sobrepuja a medida do escritor, do que resultam passagens frágeis e excessivas. Um texto como Último poema para Isabela Nardoni, inspirado em odioso crime explorado à exaustão pela mídia, demandaria um tratamento particularmente cuidadoso; não obstante, o poema tem sua força lírica prejudicada por imagens convencionais e pouco lapidadas, como aquela em que Isabela é comparada a uma “pequena flor arrancada a contragosto / do sagrado canteiro de pérolas”.
É quando ao cidadão indignado, ao ser humano consciente de sua indeterminação existencial, se alia ao poeta rigoroso e experiente que O sol nas feridas alcança seus mais notáveis momentos, reafirmando o lugar de Ronaldo Cagiano entre os melhores poetas brasileiros da atualidade.