acervo do autor
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Aguardo o sistema voltar para receber minha certidão de inteiro teor. A escrevente, de minuto em minuto, aperta o F5 na esperança, inútil já notei, de que o onipotente sistema caia em si e saia enfim de seu burocrático marasmo. Na saleta contígua, donde vem um cheiro enjoativo, o tabelião e seu substituto discutem a última partida do Sub-20 cercados por vetustos livros de lombadas escuras. 

Olho a parede. Impávido e empoeirado, o relógio cumpre seu mister. Abaixo dele, sentada em uma cadeira tão xexelenta quanto a minha, a senhorinha de cabelo chanel preenche colunas e mais colunas das palavras-cruzadas. Provavelmente espera, como eu, o majestático sistema regressar sei lá de onde.

Gritinhos entram pela porta que já conheceu eras melhores.

“Tanto lugar para essa criança brincar, vem brincar logo aqui”, resmunga a dona, sapecando outra palavra na revista.

Súbito, uma menina passa no corredor mal iluminado, arrastando consigo uma boneca quase do seu tamanho. Novos gritinhos ricocheteiam nas paredes mofadas, invadem novamente o cartório.

 “Peraí, princesa, o papai já vai!”

A voz, feito o trovão divinal, ribomba por toda a galeria, aguçando-me a curiosidade. A escrevente, inabalável, aperta o F5. Mordendo a tampa da BIC, a senhorinha faz um muxoxo. Os doutos na saleta discutem agora sobre o tarifaço de Trump, mais entusiasmados que a criança ali fora.

“Anda depressa, papai, depressa!”

Finalmente o dono da voz se revela: uma figura alta e bronzeada, ombros e peito largos, que leva consigo sacolas do Bahamas e um sorriso de âncora de telejornal.

A senhorinha faz novo muxoxo. Ah, minha filha, se soubesse como me irritam esses seus muxoxos... Todavia, como a civilidade me impede de lhe dizer isso, comento que, quando somos criança, temos pressa para tudo e, no final, acabamos assim: sentados numa repartição da vida, esperando o imperturbável sistema dar o ar da graça.

A escrevente empurra a cadeira giratória, corre à saleta contígua.

“Quede a princesa do papai? Tá escondendo de mim, tá?”

Caneta suspensa no ar, a dona retruca:

“Princesa, princesa... os homens e essa mania de tutelar a mulher, de tratá-la feito um bibelô desde a infância. Como se nós só pudéssemos viver à sua sombra e mercê. Ensinei para as minhas filhas, e hoje vivo repetindo para minhas netas: se rainha manda pouco, princesa manda é nada.”

Olho mais uma vez a parede. O relógio continua a trabalhar como um burro de carga. Triste sina essa dos relógios de parede: sempre marcando o tempo dos outros.