O segredo da vida

               Geovane Monteiro

Ana estava cansada. Esperar lhe dava a sensação de que o coletivo havia atrasado. Revistava a parada para ganhar a certeza da partida, a satisfação de sinum ponto de ônibus.
 
 Aos poucos, estar inquieta lhe apontava a sensação de posse, a satisfação de haver um momento em que cabia a ela reclamar. O movimento do corpo reclamava a tal ponto que esqueceu que o ônibus vinha. Ana sabia bem que havia o encontro consigo mesma: O jogo certo de sentir medo e desesperança. É que a espera lhe tirou o desejo de partir.
 
Mas o coletivo afinal chegou. Mal teve tempo para seu vago espanto, sua pouca estatura se enfrentou na multidão que lhe deixou distraída do próprio sobressalto. Ana acreditava agora que, se havia atraso, era de um atraso pontual. Entre um empurrão e a vitória de não ser empurrada, a mulher fitou o motorista como se ele lhe negasse um direito. Ali dentro, em silêncio, estava cheia de direitos e o melhor era nunca declará-los. Ei-la na sua reserva, pois que restava para si própria ser atual existir.
 
A canseira se confundia com o silêncio a ponto de salvá-lo. Com o olhar investigativo e imediato, havia no mundo o motorista e a bravura da mulher, embora faltasse a mulher. 
 
Alguns passos triunfantes e Ana ressurgia na roleta como quem espera ser julgado, e a certeza da inocência não lhe tirasse a acusação. Ela conferia o dinheiro antes do cobrador de modo que contar as moedas lhe prendia mais que sofrer a subtração.
 
¾ Seu troco, moça ¾ retrucava o rapaz suspenso na paisagem rápida da janela.
 
Ana pronunciava seu agradecimento diário. Mentia para si mesma quando se dava por resolvida o cobrador nunca ouvir sua voz. Era um obrigado decisivo para deixar tudo para trás. A distância aos poucos dava a ela uma garantia que reinaugurava a prévia do regresso: viver.
 
Atravessou a roleta com familiaridade e com conquista. A frieza do cobrador anunciava-lhe permissão própria para passar. Passou oculta, vingativa. Ele ficava para trás como ficavam os edifícios e os homens nas calçadas. Para trás tão logo que, por não terem tido tempo de passar, passaram o cobrador e a pequena gaveta onde ficou depositada a marcha da mulher. E assim ela seguia em sentido contrário ao do ônibus e numa força que lhe distanciava os pés para reunir o corpo agora menor do que ela mesma. O corpo disputando espaço com outros passageiros dava a Ana um pudor que ela não entendia, não conhecia, mas sabia comunicar-se bem com ele, dolorosamente.
 
¾ Eu devo ficar dura, resmungava.
 
E ficava tão dura que parecia querer obstruir-se dos desejos involuntários dos homens ao tocá-la, mesmo achando-a feia.
 
¾ Arre!..., silenciava.
 
Nem sempre sabia o que dizia, mas saber que dizia era o que lhe salvava. Era seu elo com o mundo. E o mundo no transporte coletivo também lhe permitia o elo com a vida: ela e o espaço a ser finalmente ocupado. Ana se enchia de ilimitadas apatias. Uma vez fora dona de um apartamento inteiro quando a patroa lhe confiou a propriedade. Como Ana estivera bonita nas fotos de formatura, na sacada em que avistara um horizonte de minúsculos carros, sem os homens do ônibus para molestá-la no ritmo diário da vida. Outra vez fora dona do mundo inteiro quando, de posse de uma vassoura, acertara em cheio um rato. Só ela descobrira o invasor e só a ela caberia salvar a casa na calada da noite, enquanto a patroa dormia indefesa, aperigo. Ana habilidosa, a derradeira da casa. Crime perfeito. O rato se metera com Ana. O rato.
 
¾ Ainda volto no sono da patroa, perturbou-se quando lhe ressurgiu o ônibus.
 
Não bastou o cuidado e um solavanco arrancou as mãos da moça de algum apoio imposto pela força dos freios. Na verdade, apoiara-se nela própria. Eis o elo abocanhado pelo impacto no ar. Seu elo era o arremesso da matéria, tão leve agora, para uma das janelas de onde a ela se impunha bares e restaurantes.
 
¾ Mãe! Balbuciou num sorriso de lucidez e de autocrítica.
 
Ninguém a escutou e seu corpo, lançado violentamente, a fez engolir saliva como quem comete crime de omissão. Ana sentia-se culpada de si mesma e o crime custava a boa – fé da moça em enganar os outros com sua própria verdade, num sorriso que não lhe cabia.
 
Não lhe cabia o sorriso de dentro para dentro, não lhe cabiam seus músculos contraídos na pouca carne, não lhe cabiam seus olhos nos bares e nos restaurantes que agora eram seu elo de sobrevivência, o fantasma de si. E sobrevivia mirando-os como a que amá-los sem capacidade para ser livre. Melhor era segurar-se na Ana que se desequilibrou. Só assim a moça teria chances de desdobrar um joelho e amar a possibilidade de ter amor.
 
¾ O mundo é, bafejou, voltando-se para os lados num movimento vão do corpo. O mundo é.
 
             Ana já não sabia mais o que fazer consigo mesma. Em verdade, nunca soubera. A diferença agora era que ser atéia de si própria sugeria identidade. 
 
Recuperando as forças, reergueu-se já com coragem para seu medo. Foi quando, no vidro da janela, um vulto foi se montando a cada raio do dia. Ana viu. O rosto contra si lho ocupava, Duas vidas em uma metade. A mulher, sem perceber que se evitava, começou a ser-se. Seu sentir agora era estar sentindo. Enquanto estava sentindo durava inteiramente o sentir. Seu rosto casual no espelho era uma prestação de contas paga com a própria dívida: ela.
 
De repente Ana envelhecia. Aquele rosto forasteiro lho acusava e queria querer....
 
  ¾ Eu quero! Crispou a testa, penosamente.
 
      Antes que o reflexo desaparecesse na sua própria origem, a mulher lembrou-se da família no interior. Lembrou que fora tirada de casa por uma força que só se diz em despedida num destino... Esqueceu-se do ônibus e sorriu já sem espelho.
 
¾ Eu vi!
 
No fundo a moça queria se lembrar de si mais vezes. Veio – lhe a vontade de ficar para sempre no ônibus. Para que haveria de parar?Os pneus deslizavam no asfalto de modo que havia o estado de ônibus nos rostos nem alegres nem tristes. Ana via em todos um adormecimento que os faziam intervalados da espécie humana. Via neles a falta de qualquer necessidade porque lhes bastava o estado de ônibus. A vida era o itinerário em si suficiente, vitória imemorável. Mas logo teve a impressão de que o mundo lá fora se movia e deixava o ônibus para trás empurrado para o mundo correr. E lhe era estranho estar lá fora para ver o coletivo andando e ver o mundo parado, sendo apenas um lugar. Portanto o ônibus seria o inverso das coisas – meditou, sentindo-se satisfeita e inteligente.
 
Mirou um banco enquanto removia o suor do rosto, julgou-se concluída porque conseguir sentar-se lhe dava a certeza do cálculo. Conferia seu pequeno corpo preenchendo o assento que lhe esperava submisso, sem chances. Sentou-se sôfrega e vaidosa.
 
Sentada, estava livre do que o mundo podia ser. Respirava livre e sem superfície. Ana se era quando sumia em seu olhar sem esperança nem tristeza. Não via as coisas que passavam da janela porque se tornavam o próprio olhar. Ana era toda certeza, imediata. Sentia seu imediatismo suspenso no banco por um sorriso largo de moça. Obedecia a seu sorriso porque não sabia que sorria. Paralisada, ocupoutodo o seu momento de modo a abandonar-se e a tornar-se o momento de si, a exigência cumprida sem imposição. Sobre o banco, Ana era a finalidade. Que coincidência o existir! Eu sou exatamente eu, logo eu; suspirava, agora com um fôlego que desistia na metade de seu curso para dar vez ao próximo sopro, sua mensagem de vida.
 
Mas o momento de sentar-se acabou devolvendo à moça o descuido de não ter qualquer certeza como quem confere subitamente uma parede no escuro. É que o ônibus parou como uma corrente elétrica apenas vista.  Nem quis examinar qual parada porque de tantas vividas ao menos uma lhe esperava. Era como beijar o espelho, ausência da pessoa que beijou, e conferir o batom surgido antes da boca. A parada foi-lhe a descoberta gratuitamente inacessível.  Ana sabia bem que estava parada, mas o ponto de ônibus estaria prestes a partir, empurrado por ela. Num lampejo, sua existência resultou na parada. Os olhos, agora mais vivos, já não substituíam a moça. Nem o banco.
 
¾ Queria ser no mundo mais um tanto, lacrimejou como quem tem estratégias para enganar a Deus.
 
De quando em vez a moça desejava livrar-se do mundo para ser nele mais um tanto. A ausência era seu aconchego, sua luta de espectadora. Por isso contava que o mundo, enquanto não estivesse àmostra, era do tamanho do atual instante de sua vida.
 
Alguns descendo e outros subindo repetiam o coletivo numa esperança soletrada pela indiferença que une. Ser indiferente era o instante em que Ana vencia a si mesma, gratuitamente. Não lhe custava senão apenas ser-se. Crer seria cobrança e ser, anistia. Não raro, cria que a felicidade não era possível, e se podia ser feliz. E se podia ser através da própria incapacidade. O não – ser construía uma nova existência. A felicidade sem princípio nem fim, mas simultânea à Ana.
 
Tudo era tão simultâneo a ela que as surpresas e as mesmices se confundiam com o tempo passando, com o contentamento que se tem por não saber senti-lo. Seus olhos velavam o resto da vida no corpo que lhe abrigava dele mesmo como quem foge de uma chuva para senti-la bem. Simultânea era a moça se sentindo desconhecidamente próxima de si própria. Nem um susto lhe assustava. Nenhuma vida lhe somava senão aquela que não era sua por puro capricho deexistir-lhe. Ana tornava a vida no ônibus, o eu que nunca houve para não se desgarrar dela, para não traí-la. A velocidade de tanto existir ao seu tamanho tornava-se simultânea ao próximo instante para consumir o espaço livre. O instante sem tempo para ele próprio era o tempo. As horas mais calmas concentravam-se na atualidade, locomoção sem futuro nem fim. O embalo do coletivo comandava a vida da mulher.
 
Quando o ônibus se aproximou do destino da moça, os passageiros de repente lhe devolviam o motorista e o cobrador outrora vencidos pelo medo afobado e acolhedor de Ana. Pontualmente vã, erguida no corpo sem ela, levantou-se do banco como quem foge de uma arma invisível.  Ou como quem da armatornou-se a mera possibilidade do tiro. Levantou-se ressuscitada, um objeto debatendo-se dentro dele mesmo. Levantou-se sem alicerce, mas humana o bastante para interromper suas artérias num lance em que a vida valia até ali:uma nova chance que se sente quando se põe os pés de novo no chão. Ana sentia-se orgulhosa como quem muda a própria história ao olhar para trás.  Ainda no ônibus, olhava para trás, em pensamento, e via um presente tão remoto que seria melhor estar desprovida de tempo. Revia em vários espelhos seu rosto, uma floresta viçosa que nasce desaparecendo. Uma floresta gasta de tão virgem. Ana havia se desperdiçado nela própria ao tempo do ônibus. A vida que era dada a ela estaria prestes a partir no coletivo, sem explicação. A explicação era acostumar-se com as perguntas que nem chegavam a vir, mas existiam.
 
Finalmente encarou a porta de saída num instante em que o mundo se ofertava a ela para manter-se distante. A moça logo viu que uma transição de vida mais uma vez lhe repetiria para sua grande surpresa diária. Em verdade, a surpresa estava nos outros mas ela era quem escondia o entusiasmo. Nesse momento se sentia mulher para muitos ônibus. Apertava o peito com um soco que não passava de surpresa alheia captada por uma admiração que o mundo dava só a ela.
 
Dessa forma confundia chegada com partida. A qual recorrer? Recorria a ela própria. Não saber lidar consigo mesma lhe dava a chave de permanência na vida. Ana já não tinha uma vida. Ia e vinha porque era uma vida. A mulher pulsava fora de si para ter com o mundo o que lhe pertencia: sua ausência tão complementar.
 
A vida lá fora era alcançada num suspiro despercebido que lhe substituía. Arrastava o corpo numa intimidade sem romantismo. Na primeira rua, na segunda e em outras tantas aos poucos em lances deslizavapara sentir que a intuição fazia de sua pouca inteligência a preparação para a vida. O que havia de ordem e de superioridade humana era atenuado pela sua força que, se não lhe pertencia por um preço, lhe iludia a feminilidade. Tudo era encontro e poder de escolha numa vaidade que, ao separar as pedras, punha a rua no lugar do caminho.
 
¾ Em algum lugar,... em algum lugar..., distraía-se ofegante.
 
Seguia sua sorte como quem segue uma multidão que acaba por tornar-se o lugar pretendido. Sua multidão, em lances circulares de pernas patuscas, dava-lhe uma certeza de estar-se bem mais que qualquer certeza concluída e forte. Estar-se dava a Ana uma segurança de calçamento a qual se tem quando se ouve que as pedras ainda são novas. Ouve-se e basta porque toda a gente pronuncia que o ônibus chegou ou que partiu e a esse propósito não mentem porque a verdade apareceria simultânea à mentira. Ou não haveria uma aceitação do que já se quis, dos instintos mais impossíveis e inevitáveis.
 
¾... – arfava, numa ausência que lhe havia nas maneiras.
 
Seus gestos lhe atenuavam a face e lhe faziam a vez de si. Uma mulher poucopresa ao próprio espaço não ousaria as respostas da qual Ana compunha as perguntas. Havia uma avenida mais distante do que o alcance da sua vista e o mundo batia no seu peito para que ela se guiasse com a vontade própria varrida da memória.
 
¾... ! – contentava-se, esquecendo-se do cansaço e de haver chegada.
 
Ela tornou-se o próprio itinerário como a chegada para uns é partida para outros. Ia porque descera do coletivo assim como entrara: num golpe do tempo.  Diluía-se no tempo, tesouro esquecido no seu brilho demorado a que Ana chamava vida.
 
Geovane Monteiro, Professor