O ROMANCE DE Oton Lustosa

Eu, que sou filho do meu tempo, cumpro o dever de testemunhá-lo. Gozo ou padeço o deleite de cantar ou gemer a realidade que está na frente do meu nariz, dentro dos meus olhos, eternamente presente nos meus sonhos de esperança ou nos meus pesadelos de desilusão.

                                     Oton Lustosa 

 

                                      [Prof. Me. Carlos Evandro M. Eulálio*]

 

É um privilégio e uma grande satisfação para mim, apresentar nesta Academia os dois romances de autoria do consagrado escritor Oton Lustosa: Meia-Vida, em 3.ed., da Editora Bienal, Teresina, 2024 e Vozes da Ribanceira, em 2.ed., da Editora Mondrongo, Itabuna-BA, 2023. Missão difícil, porquanto, renomados críticos tanto do Piauí quanto de outros estados do país acolheram com entusiasmo estas duas obras, escrevendo sobre elas inúmeros artigos, ensaios, resenhas e trabalhos acadêmicos. No entanto, tenho a convicção de que a obra literária, por mais que seja lida e interpretada, sempre guarda um sentido subjacente à espera de novos leitores. Extrai-se das lições de Umberto Eco o pressuposto de que a obra de arte literária consiste num processo aberto a múltiplos entendimentos.

A partir de um recorte temático, pretendemos desenvolver aqui os seguintes pontos: A configuração urbana da obra, sua contextualização no quadro literário brasileiro, o narrador em 3ª pessoa e o modo de construção da narrativa.       

Oton Mário José Lustosa Torres, literariamente Oton Lustosa, é ensaísta, contista, cronista e romancista. Nasceu em Parnaguá Piauí em 1957. É bacharel em Direito, tendo exercido o cargo de Desembargador do Tribunal de Justiça do Piauí durante quase dez anos. Aposentou-se voluntariamente em janeiro de 2023. Ocupa a cadeira nº 5 da Academia Piauiense de Letras.  Atualmente é vice-presidente da Academia Piauiense de Letras Jurídicas. Na área jurídica é autor dos livros Petições e Sentenças (1988), Ações Possessórias (1990) e Da Propriedade Imóvel (1996). Mas é a literatura que o torna conhecido como notável ficcionista, ao escrever as seguintes obras: Meia-Vida (romance,1999), O pescador de Personagens (contos, 2000), Vozes da Ribanceira (romance, 2003); Em busca de uma rede na varanda (contos, 2022), além de resenhas, comentários e ensaios de crítica literária.      

Os livros ora reeditados foram rigorosamente revistos pelo autor, exclusivamente no plano da linguagem, sem nenhuma modificação em sua estrutura narrativa, já delineada nas edições anteriores. O escritor William Zinsser diz que reescrever é a essência de escrever bem. Prática corriqueira de autores preocupados em aprimorar o estilo literário de sua escritura. Com esse propósito, Félix Pacheco notável poeta piauiense, reescreveu por diversas vezes o soneto Estranhas Lágrimas. Essas alterações encontram-se no ensaio de A. Tito Filho, publicado na Revista de Letras de Fortaleza, jul./dez.1986, disponível na grande rede.  

A ficção literária de Oton Lustosa em sua configuração urbana na vertente social, coaduna-se com o modelo do romance brasileiro dos anos (19)70 e (19)90. Na visão de Alfredo Bosi, a literatura urbana desse período tem como marca principal a pluralidade de formas e tendências, ideia reforçada por Antônio Cândido, ao afirmar no ensaio A Nova Narrativa que o romance urbano dessa época constitui uma “verdadeira legitimação da pluralidade” quanto à forma e quanto ao conteúdo (CANDIDO, 1989, p.199).

O atual espaço urbano como organismo sempre em mutação, em meio ao acelerado processo de migração do campo para a cidade, é cenário de violência, do aumento de pessoas atuando no mercado informal, de desigualdades sociais, de desestabilização de valores que rompem raízes e implicam a alienação, a perda de identidade, a anulação do sujeito e o empobrecimento dos vínculos culturais, afetivos e familiares. Com base nesse cenário, cada autor projeta em sua obra uma representação fragmentária da realidade que vivencia na cidade, pondo a nu suas mazelas sociais, por meio de múltiplas leituras e de diversos pontos de vista. Somam-se a isso o experimentalismo formal e a mistura de tendências estéticas.

A marginalidade econômica e social, a resistência política contra a ditadura, a violência policial urbana, o embate das classes sociais, os problemas da cidade inflados pelo êxodo rural e pelo acelerado processo de modernização constituem em síntese o núcleo temático dos romances Meia-Vida e Vozes da Ribanceira, ambos narrados na 3ª pessoa.

Esse ponto de vista é habilidosamente trabalhado por Oton Lustosa, ao dar voz a suas personagens através do discurso indireto livre, uma forma de polifonia nos termos bakhtinianos, em que a voz do narrador se confunde com a voz das personagens. Além da voz do narrador, outras vozes se mostram no processo discursivo, como nesta passagem em que a fala da personagem em 1ª pessoa surge no decorrer do discurso do narrador em 3ª pessoa:

 

Raimundão Araújo, dono de terras e de bichos, mostra-se insatisfeito com o rumo dos acontecimentos. Enquanto isso, Nego Mundico, à sombra de um caneleiro, tira o couro de um carneiro gordo. [...] Vivo ajudando esse povo. Entrego roça derrubada, destocada, arada. Eles plantam, colhem, pagam renda mixuruca e nem o capim para o gado deixam na terra. “Desgraçados”, diz o fazendeiro com indignação. O seu compadre Valdo está ali e não o deixa mentir. Nunca negou um pedaço de terra aos que querem trabalhar. Pedem, ele dá. [...] Plantem apenas o capim – é a única exigência. [...] Cobro a renda. Ou pensam que sou o pai de todos?   

 (LUSTOSA, Vozes da Ribanceira, 2023, p. 66). 

 

Nos dois romances as ações se transcorrem sempre no tempo presente, na modalidade conhecida por presente-histórico, como se o narrador presenciasse as cenas que descreve, como nesta passagem realista, mesclada de poeticidade:  

 

Cedo, ainda escuro, quando os pardais fazem alvorada na figueirinha, chegam os primeiros feirantes. Belim, um tipo muito conhecido na feira, ainda dorme sobre a esteira de papelão, ao pé da árvore. O rio desliza de mansinho lambendo o cais. Padeiros madrugadores, ao longe, tomam a ponte metálica rumo a Timon. Vão pedalando suas bicicletas cargueiras, com enormes cestos cheios de pão. Daí a pouco, quando o sol principia, beijando timidamente a cidade e seus edifícios, muitos já são chegados.

                  (LUSTOSA, Meia-Vida, 2023, p. 9). 

                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                         

O centro histórico de Teresina é o espaço do romance Meia-vida, compreendendo o Troca-Troca, local onde se comercializam objetos usados, o Parque da Bandeira, a praça Rio Branco e os bordéis da rua Paissandu e do Morro do Querosene. O elenco de personagens é numeroso, representado por pessoas de classe humilde, estigmatizadas por preconceitos e discriminação social. Na obra dois personagens moldam o seu próprio destino. Conseguem superar barreiras impostas pela classe social: Santino e Celeste. O protagonista Santino, como modelo de pessoa honesta e de princípios éticos, luta para alcançar seus objetivos, apesar de viver num ambiente social adverso e hostil. Assim como Celeste, filha de Francisco Carroceiro, que chega à Universidade e conclui o curso de pedagogia. No final do romance, implicitamente, o autor nos adverte pelo narrador que nem sempre a ascensão social traz a felicidade almejada, muitas vezes é acompanhada de perdas e de conflitos internos, tal é o que acontece com Santino. Decepcionado com o casamento e com a política, chega à seguinte conclusão:

 

Amanhã cedinho, irá ao povoado Aleluia, para dizer a Cassiano Amorim quem é a filha e quem é a sogra. [...] Santino pensa em desistir, não ser mais candidato a coisa nenhuma [...]. Quem sabe, voltará para o hotel Santa Rita; seu Marcolino o receberá.      

    (LUSTOSA, Meia-Vida, 2023, p. 160).

 

Vozes da Ribanceira tem como cenário principal o bairro Poty Velho. Suas personagens são representadas por oleiros, artesãos, vazanteiros, além de pescadores e dezenas de tipos humanos que se movem nas ribanceiras dos rios Parnaíba e Poty em precárias condições de vida. O hippie Tenório, artesão, músico e poeta, personagem de maior destaque, é seguido pelo leitor com maior interesse até o final da narrativa. Em torno dele opera-se o clímax do romance que antecede o desfecho da obra. Representa o anti-herói que migra do Recife para Teresina e se instala na comunidade do Poty para desassossego das famílias que guardam suas filhas exclusivamente para o casamento:

 

Chegou e ficou, parece de bem com a vida; tem a sua arte. Tem a pele vermelha, com uma tatuagem enorme no muque direito. No pulso, o bracelete de latão com pedrona verde encastoada. Diz ele que é pérola do mar, que tem muito valor. As moças não se cansam de escarafunchar a joia, mais pelo gosto de alisar o braço do forasteiro, que é todo ele ternura e carinho.

(LUSTOSA, Vozes na Ribanceira, 2023, p.37).

 

Sua presença na Vila do Poti gera desconfiança dos pais das moças donzelas, tendo à frente o soldado Sousa Martins, temeroso de que a filha Tatiane seja seduzida pelo hippie. O militar, que se diz descendente do Visconde da Parnaíba, é sequioso por dar termo ao comportamento libertino do artista e trancafiá-lo atrás das grades, com ajuda do investigador Pereira, espécie de araponga, sempre à cata de inimigos do regime, atribuindo-lhes a pecha de elementos subversivos, argumento muitas vezes falacioso daqueles que durante a ditadura se prevaleciam do poder para perseguir desafetos:

 

O investigador Pereira haverá de cavar uma ficha no DOPS para esse tal subversivo infiltrado no meio do povo. Comunista, isto sim, diz Valdo Paim, de si para si.

(LUSTOSA, Vozes da Ribanceira, 2023, p.56).

 

Essa prática criminosa é jocosamente representada na ficção de Sérgio Porto, o nosso saudoso Stanislaw Ponte Preta, no miniconto Garoto Linha Dura cuja personagem, jogando no jardim do condomínio em que morava, estilhaçou uma vidraça com a bola. Em casa, após acusar o coleguinha do lado é instado pelo pai a tomar satisfação com o vizinho. Foi aí que Pedrinho provou que tinha idéias revolucionárias. Virou-se para o pai e aconselhou: “– Papai, esse menino do vizinho é um subversivo desgraçado. Não pergunte nada a ele não. Quando ele vier atender à porta, o senhor vai logo tacando a mão nele” (PONTE PRETA, 1995).

   

                                                Romancista Oton Lustosa. Foto: AscomAPL                                                                                                                          

Para a construção dos romances Meia Vida e Vozes da Ribanceira, além de o autor partir de uma referencialidade conteudista, é conectado ao zeitgeist ou espírito de uma época, termo de origem alemã, proposto pelo escritor polonês Johann Gottfried Herder (1744-1803), composto de zeit (tempo) + geist (espírito), mediante o qual se refletem ideias, valores, crenças e tendências predominantes na sociedade, em um determinado momento. Quando falamos que os anos (19)60 foi a década da Era Espacial, estamos nos referindo ao espírito do tempo dessa época que, em síntese,  remete a tudo que contribui para a construção do ambiente cultural e intelectual de uma sociedade. Para o filósofo e teórico da literatura Anatol Rosenfeld (1912-1973), o zeitgeist “refere-se ao espírito unificador que se comunica a todas as manifestações culturais inerentes a cada fase histórica, naturalmente com variações nacionais”. O espírito do tempo na obra de Oton Lustosa corrobora também o seu propósito pedagógico, permitindo ao leitor inteirar-se dos fatos e das transformações socioculturais que ocorreram em Teresina nas décadas de 1970 e 1980. O elemento fabular dos romances Meia-Vida e Vozes da Ribanceira é remissivo aos anos finais do regime ditatorial no Brasil, quando esse período dava sinais de extinção, como se percebe nesta passagem:   

 

[...] Outros são os tempos, porém a CUT conduz milhares de metalúrgicos à praça pública, reivindicando a redemocratização; marchas a Brasília dos prefeitos se amiúdam. O povo ganha as ruas e monta palanques. Os estudantes têm papel de destaque no processo de redemocratização do país. Santino, como representante dos estudantes secundaristas, toma a linha de frente nos movimentos reivindicatórios. Até seu Marcolino que não tem lá ideias muito avançadas nesse terreno de mudanças, está de acordo com a volta das eleições diretas: Que voltem pros quartéis, ele diz; referindo-se aos militares.

      (LUSTOSA, 2023, Meia-vida, p.99)”.

 

Ler estes dois romances de Oton Lustosa é uma maneira de reviver, pela literatura, momentos políticos e socioculturais pelos quais o país passou durante os anos (19)70 e (19)80 de nossa era, que repercutiram em nosso meio de forma marcante, inesquecível. Considero imprescindível nesta nossa análise mencionar o depoimento não do romancista, mas do ensaísta Oton Lustosa, no artigo “Viva o romance e não pereça o mundo”,   sobre Vozes da Ribanceira, e aqui parafraseio o autor, ao referir-se a suas personagens situadas no contexto da realidade amarga dos anos 70... e do sonho doce do alvorecer democrático dos anos 80:

“A minha personagem central não é o hippie Tenório, lindo moço de cabelos longos e corpo tatuado; nem a loura e bela e sensual Zizinha de Almeida... Nem o fazendeiro Raimundão Araújo, ou o padre Pedro, o Lico Passarinheiro, o Zito, a Ditinha, a rapariga Carmosa, os poetas cantadores Arlindo Viola e Caetana, o bodegueiro Bisô, o macumbeiro Janjão, o soldado Sousa Martins ou o pescador Galdino Canoeiro... Ou tantos outros.  A minha personagem central é o povo do Poti Velho, este povo tão genuinamente teresinense, nordestino, brasileiro!” (LUSTOSA, Jornal da Poesia, s/d).

A ficção literária de Oton Lustosa não apenas reativa a memória dos que viveram esses momentos, mas ao mesmo tempo informa aos jovens leitores de hoje os relevantes acontecimentos de nossa realidade histórica de décadas passadas. Na definição de Ítalo Calvino, “Os clássicos são aqueles livros, dos quais, em geral, se ouve dizer: Estou relendo... e nunca “Estou lendo...”

 Finalizo dizendo a todos que estou relendo a obra de Oton Lustosa.

 

*Carlos Evandro Martins Eulálio é mestre em Educação, professor de Latim, Literatura Brasileira e Língua Portuguesa. É membro da Academia Piauiense de Letras, ocupante da Cadeira 38.    

        

REFERÊNCIAS

BAKHTIM, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária, 1981.

BOSI, Alfredo. A ficção entre os anos 70 e 90: alguns pontos de referência, em A História concisa da literatura brasileira, São Paulo: Cultrix, 2007, p. 434.

BUENO, André. Sinais da cidade: forma literária e vida cotidiana, em O imaginário da cidade, org. Rogério Lima e Ronaldo Costa Fernandes. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2000, p. 89.

CALVINO, Ítalo. Por que ler os clássicos. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007, p.11.

CANDIDO, Antonio. A nova narrativa, em A educação pela noite & outros ensaios. São Paulo: Ática, 1989.

FURLAN, Vera Irma. O que é o texto. In CARVALHO, Maria Cecília M. de. (org.) Construindo o saber: fundamentos e técnicas. 5.ed. Campinas, SP: Papirus, 1995, p. 119.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. Trad. de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.

LUSTOSA, Oton. Vozes da Ribanceira. 2.ed. rev. Itabuna – BA: Mondrongo, 2023.

LUSTOSA, Oton. Meia-Vida. 3.ed. rev. Itabuna – BA: Bienal, 2023.

LUSTOSA, Oton. Viva o romance e não pereça o mundo. Disponível em http://www.jornaldepoesia.jor.br/otonlustosa.html.

PONTE PRETA, Stanislaw. (Sérgio Porto). Dois amigos e um chato. São Paulo, Moderna, 1995.  

ROSENFELD, Anatol. Texto / Contexto. São Paulo: Perspectiva,