O rio de Humberto Guimarães

Elmar Carvalho

 

Após o término da solenidade de sábado passado, dia 10, no auditório da Academia Piauiense de Letras, em que foram lançados os livros O prestígio do Diabo, de Assis Brasil, Modernismo & Vanguarda, 2ª série, do professor M. Paulo Nunes, e a Revista da APL, nº 74, e inaugurado o Museu da Cultura Literária Piauiense, de nossa Academia, recebi recado de que o acadêmico Humberto Guimarães me esperava no recinto do Museu para me entregar um livro de sua autoria.

Tratava-se da edição impressa de Rio – caminho que anda (2016), já publicado virtualmente pela Amazon. Transcrevo a amável dedicatória que ele me fez: “Para o confrade Elmar Carvalho – resultado do debate por você incentivado sobre o nosso Rio Parnaíba”. Acrescentou a palavra cordialmente, a assinatura e a data, 10.3.2018. O autógrafo se referia ao seminário “Encontro em Defesa do Rio Parnaíba”, por mim idealizado, que teve o indispensável apoio de Nelson Nery Costa, presidente de nossa APL, e que também contou com a colaboração da AMAPI – Associação dos Magistrados Piauienses e do GOB/PI – Grande Oriente do Brasil/Piauí.  

Nesse seminário, proferi a palestra “Rio Parnaíba – problemas e soluções”, que no meu entendimento, infelizmente, permanece mais atual do que nunca, ou como sempre. Humberto Guimarães, com muito discernimento e propriedade, discorreu sobre “O rio Parnaíba na Literatura Piauiense”, enquanto o deputado federal José Francisco Paes Landim fez a conferência “Em defesa do rio Parnaíba”, em que teve a oportunidade de se referir à sua luta parlamentar em favor de nosso mais importante patrimônio natural.

Como se depreende da dedicatória, o livro de Humberto Guimarães foi resultado de sua conferência no “Encontro em Defesa do Rio Parnaíba”, que só por isso valeu a pena ser realizado, além de ter chamado a atenção para a imensa degradação em que se encontra o nosso mais notável curso d’ água, que nunca mereceu os cuidados de nossos governantes, seja na esfera federal ou estadual. No livro em comento consta que ele corta 21 municípios. Promove o abastecimento d’ água (além da irrigação de plantações) de inúmeros povoados e cidades, entre as quais cito: Ribeiro Gonçalves (torrão natal do autor), Uruçuí, Floriano, Teresina, União, Luzilândia e Parnaíba.

Desde que ingressei na APL, observo o comportamento de Humberto Guimarães. Chega cedo às nossas reuniões, quase sempre portando um livro. Geralmente se concentra na secretaria, para ler ou para conversar com algum confrade. Sua palestra é agradável, por vezes erudita, mas sem empáfia ou ostentação. Sempre tem um “causo” interessante ou anedótico a contar, a que não falta o condimento de saudável bom-humor.

Pude lhe perceber o acendrado amor aos livros, pelo modo como os segura, como os folheia, como os manuseia, quase a afagá-los. Também pelas palavras com que a eles se refere. Em verdade é um bibliófilo em vários sentidos; tanto porque de fato os ama, como também porque é amante inveterado da boa leitura; porque os preserva e porque tem gasto uma boa soma de dinheiro na aquisição de obras raras ou quase esgotadas.

Nas reuniões é sempre comedido ao falar, e quando o faz é quase monossilábico.  Pouco pede a palavra, mas eu bem sei que assuntos importantes não lhe faltariam, assim como tenho ciência de que, quando fala, o faz com propriedade e fluência, como se fora experimentado tribuno. Creio seja isso uma postura natural sua, já que não é por timidez nem por falta de eloquência.

No dia 14.11.04, na cidade de Ribeiro Gonçalves, onde fui juiz por quatro anos, por ocasião da solenidade de instalação da Fundação Leôncio Medeiros, criada pelo amigo Adovaldo Medeiros, em que tomei posse do cargo de membro honorário dessa entidade educativa, cultural e de promoção social, lancei o opúsculo “Tempos ribeirenses”, que enfeixava a minha palestra. Foi nessa oportunidade, em que também foi inaugurada a Biblioteca William Palha Dias, dessa Fundação, que presenciei o nosso Humberto Guimarães pronunciar admirável discurso de improviso, em voz pausada e firme, de perfeita dicção. O seu teor era denso e bem articulado, sem titubeios e vacilações, e se fosse convertido em peça retórica escrita creio não necessitaria de revisão, pois me pareceu irretocável no conteúdo e na correção gramatical.  

Este livro e a obra Abyssus bem demonstram a sua invejável erudição e capacidade de pesquisa, reflexão e poder argumentativo. Em Abyssus aborda grandes temas e biografias da literatura, entrando em pormenores instigantes que somente um grande e erudito leitor enfrentaria, e ainda mais com perspicácia e pertinência. Além de comentar a obra de célebres escritores, por ser competente psiquiatra, também lhes analisa aspectos da personalidade e do perfil biográfico, por vezes encontrando justificativas para suas idiossincrasias e eventuais extravagâncias.

Em Rio – caminha que anda aborda os mais variados aspectos de um curso d’ água. Refere-se, com mais ou menos palavras, aos mais importantes rios do mundo. De alguns descreve os dados corográficos mais peculiares ou relevantes e episódios históricos ou do povoamento de que foram cenários. O poeta H. Dobal, num de seus textos, dizia que um rio é tão importante que tem nome próprio. Humberto cita as denominações dos mais célebres “caminhos que andam” do planeta. Reporta-se a escritores e poetas famosos que lhes louvaram a beleza e a importância. Transcreve apropriados e elucidativos trechos de alguns desses autores. Em suas 226 páginas sintetizou o que havia de essencial a dizer.

Dedicou uma parte ao Rio Parnaíba. Descreve os seus principais aspectos corográficos. Cita-lhe os afluentes, dedicando preciosas linhas a alguns de seus principais tributários. Dedica um bom espaço às nascentes, transcrevendo esclarecedores trechos de estudiosos de nosso mais importante curso d’ água. Traz preciosas informações históricas, em que trata dos primeiros povos que perlongaram suas margens, dos primeiros ocupantes de suas ribeiras e das povoações que lhe ficam perto. Cita, por vezes transcrevendo-os, os poetas e escritores que o tiveram por tema. E, como não poderia deixar de ser, estuda as suas principais mazelas e as causas de sua ostensiva degradação, de que as coroas de areia, a fina lâmina d’ água e a largura excessiva são o sintoma mais perceptível e evidente.

Em seu estilo de contornos artísticos bem próprios, mas sempre de denso conteúdo, já tratou do Velho Monge (para usar a famosa imagem dacostiana que lhe serve de epíteto), em vários outros textos, inclusive no romance Nas pegadas do rio. Por sua grande extensão, por contornar diferentes acidentes geográficos, por ter passagens estreitas, por formar corredeiras e remansos, por formar o lago da Boa Esperança, por atravessar diferentes florestas, e no final se abrir, como a cauda de um pavão, nas várias bocas do Delta, que lhe serve de encantador arremate, é referto das mais diferentes formas de beleza paisagística.

Assim também a prosa de Humberto Guimarães às vezes é caudalosa e torrencial como um grande e vigoroso rio, às vezes é contida como um rio de planície, com remansos e lagos, outras vezes é calma e mansa como um discreto riacho, e outras vezes é impetuosa e turbilhonante como uma corredeira, mas sempre com muita substância, pertinência e correção vernacular. Porque assim é a vida, inclusive a vida de um rio.