O rio das mortes

NEUZA MACHADO

O(s) narrador(es) (s) atravessou/(atravessaram) a terra (dimensão histórica), atravessou/(atravessaram) o fogo (fogo real e fogo mítico), e agora sua(s) alma(s) chegou/(chegaram) “à beira d’água” dos pensamentos eternais. A imaginação dilatada, enquanto predisposição material - a escrita ficcional - necessitou “que a água [tivesse] sua parte na morte; ela [teve] necessidade da água para conservar o sentido de viagem da morte”, das diversas mortes sub-anunciadas na frase “pelos limites imprecisos da morte”, denunciando “os valores inconscientes acumulados em torno dos funerais” aquáticos, nitidamente resguardados nas lembranças imperecíveis de quem narra. “Oh, ruturas!” Oh, relato que não tem semelhante! Quantos inocentes foram tragados pelo Rio das Mortes localizado na Floresta Imensurável do Estado do Amazonas, próximo à cidade de Manaus? O fatídico Rio Urubu. Algum amazonense se recorda dele? Eu me recordo, porque morei em Manaus em 1996. Eu conheci este rio da morte, repleto de perigos inimagináveis, o rio-túmulo de muitos náufragos, os quais no passado não puderam se salvar dos grandes acidentes fluviais e pereceram por obra e graça de piranhas vorazes. Por tal necessidade, e a partir do imaginário-em-aberto do ficcionista pós-moderno, visualiza-se, aqui, um Caronte mítico travestido em personagem ficcional, o Pierre Bataillon.

Então, quem é este Pierre Bataillon (aquele que tem consciência de que “um dia” pagará “muito caro” por retirar da Amazônia o seu “sangue” precioso), enquanto “barqueiro-guardião de um mistério”? Seria ele o Caronte/Guardião das antigas verdades impenetráveis, ou o Caronte/Guardião das diversas mortes ficcionais que estão a se avizinhar ao longo da narrativa? Por que o “simbolismo de Caronte” apareceu nestas páginas incomuns? Por que o narrador-personagem diz que “entre o Seringal e os Numas não havia canal”? E por que havia “entre a tropa de guerra [tropa de guerra de Pierre Bataillon: os Caxinauás domesticados] e a floresta dos Numas uma reciprocidade tática de respeito e de raivas”?

 

 

Para que eu possa responder aos meus questionamentos interativos, os quais direcionam esta reflexão teórico-interpretativa, terei de compreender o simbolismo do além narrativo, ou extraficcional, destas páginas peculiares. E para evitar complexas e desavisadas argumentações contrárias, e possíveis rejeições teóricas (evidentemente, de meus pares), recorro novamente à filosofia de Gaston Bachelard.

 

O fogo da labareda da serpente

 

Sobre O AMANTE DAS AMAZONAS, de Rogel Samuel