Tudo começou com o rio. Esse rio que nasce na serra das Confusões, em Caracol, descamba por chapadas e caatingas, corta a Lagoa de Nazaré e vai engrossar outros rios, o Canindé, o Parnaíba... E o mar absoluto e misterioso. Esse rio que recebeu o nome de Piauí – melhor designação não poderia ter – e marcou para sempre a nossa vida.

      Ao longo de suas margens, vão se criando cidades. São João do Piauí nasceu ali, na beira de aluviões. O rio propiciou a formação de seu povo e forneceu a argila que moldou a mentalidade de sua gente.  
 
      Refletindo sobre as origens da cidade, servi-me apenas da memória, que não raro falha e se apaga esquecida nos escaninhos do tempo. Não li documentos oficiais, não consultei velhos papéis amarelecidos, não fiz o que faria um historiador; minha intenção é tão-só enfatizar a importância do Rio Piauí na gênese do povo sanjoanense. Assim, desfiando o raciocínio, os cordões do novelo, fui montando os mosaicos, encaixando as peças do jogo e, no fim, o que se me deslindou, coloco aqui nesta modesta prosa.
 
      Se a povoação começou com a fazenda Malhada do Jatobá e se agregou em volta da capela de São João Batista, erigida pelos Jesuítas, nas proximidades do rio... Se muito tempo antes, já os índios Pimenteiras, os Acroás, os Gamelas, habitavam os vales desde as nascentes do rio... Se a Igreja, fundada pelo Frei Henrique, em 1875, foi construída estrategicamente num alto, levando-se em conta a presença do rio, a sua geografia e o seu relevo... Então, a origem de tudo é o rio! Foi o rio que viabilizou as condições de crescimento da povoação, concedendo-lhe o refrigério, a água, o solo e os peixes.

      A cidade ganhou certidão de nascimento em 1906. O rio e a fé em São João Batista deram-lhe também a identidade. Digamos que a Igreja, com o barro e a água do Piauí, moldou a espiritualidade e o sentimento do povo.

      O rio está entranhado na alma de São João do Piauí. É como que o sangue que pulsa nas veias de seus filhos. Impossível esquecer esse rio, as suas cheias e invernadas, os seus poços e seus peixes, os seus becos e mistérios. Amamos esse rio profundamente e o guardaremos para sempre na memória.
         
      Num mergulho em suas águas, de encontro a épocas passadas, roda o filme em preto-e-branco: sair de casa numa manhã nublada ou numa tarde amortecida pelo sol e assistir ao espetáculo de uma enchente... Sim, uma cheia do Piauí era realmente espetacular! As águas corriam velozes em torvelinhos e rodopios traiçoeiros, arrastando na enxurrada melancias, abóboras, melões, cachos de banana e animais mortos, ou vivos, em cima de balseiros e garranchos de pau.  
 
      Dava prazer, suspense e pânico, ver nadadores enfrentando a torrente para pegar as frutas, ou, simplesmente, só para se exibir à platéia amontoada nas ribanceiras do rio. Alguns boiavam em câmaras de ar de pneu de caminhão. Outros se arriscavam em braçadas firmes. Os nadadores amarravam na cintura ramas de salsa para evitar câimbras. Ainda assim, de vez em quando, o Piauí ceifava a vida de um!  

      O rio invadia as áreas ribeirinhas e devastava as roças. Houve uma inundação em que as águas galgaram a ribanceira e vieram lamber as paredes do Clube. No percurso, o rio destruiu cercas e arrasou plantações, como nos versos de Bertolt Brecht: “Do rio, que tudo arrasta, se diz que é violento, / mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.

      Nessa época, não havia a ponte e a passagem era feita em canoas. A atividade exigia força e perícia dos canoeiros que manobravam os remos. Um deles mergulhava uma enorme vara até o fundo do rio e, apoiando-se nela, de pé, na popa da embarcação, dava impulso e projetava a canoa para frente. Esse recurso era utilizado contra a correnteza junto à margem cercada de roças. Ao alcançar certo ponto, o canoeiro calculava o momento de começar a travessia. Nessa hora, os remadores entravam em ação. Nem sempre o cálculo dava certo e a embarcação passava do beco e descia além do ponto em que ia aportar. De novo, o canoeiro tinha de utilizar a vara contra a força das águas, o que demandava um esforço adicional para conduzir a canoa até o beco.

      A travessia de automóveis no Beco dos Carros provocava agitação. Quando o rio vagava e as águas baixavam ao peito, carregadores e tarefeiros, depois de atarem troncos de pau entre os eixos e o estrado do carro, usavam a força bruta dos ombros e dos braços, e o transportavam ao outro lado do rio, sob os aplausos dos curiosos que assistiam ao feito em leda algazarra.

      Cada beco do rio era uma artéria que irrigava o nosso coração. Cada beco tinha o seu encanto, com bons poços de banhar e de pescar. Pegando do Poço do Rego, aos arrabaldes da cidade baixa, havia o Beco do Felinto; o Beco do Bugio; o Beco do Salão; o Beco da Lavadeira; o Beco do Potão, sobre este há uma máxima popular de que o visitante que beber de sua água fatalmente se casará com uma moça da cidade; o Beco dos Carros; o Beco do Joaquim Lopes ou do Zé Anum, lá, em cima da ribanceira, ficava o cabaré do Zé Calixto, o Cai N’água; o Beco do Zé Piauí ou da Luísa Boca Porca; o Beco do Bambu, onde existiam ótimos poços para se banhar, com coroa ou praia; o Beco da Ingazeira, ali, da copa dessa árvore, como num trampolim, pulávamos em vôo mortal na superfície das águas; o Beco da Casa Branca; o Beco da Morena; o Beco do Genésio; e o Beco do Zé Romão. Nestes dois últimos fazíamos inesquecíveis piqueniques.

      A deusa Mnemosyne corta as águas profundas e traz à tona os peixes e outros habitantes do rio: a pacu, o piau, a curimatá, o mandi, a sardinha, a traíra, o surubim, a branquinha, a piranha, a corvina, o mandubé, a piaba, o bico-de-pato, o corró, o cari, o jacaré, o caranguejo, a arraia, o cágado e o muçum.

      O Rio Piauí corre na veia e o coração nos estremece só de ouvir o seu nome. É como que um retorno à infância, às origens da nossa vida. Esse rio é para nós o mais bonito de todos, assim como o foi, para Alberto Caeiro, personagem de Fernando Pessoa, o pequenino rio da sua aldeia, que o poeta, num jogo de palavras, cantou em versos, em comparação ao Tejo, o principal rio de Portugal.  
      

         "O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,        
         Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
         Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.”