O que está em jogo quando avaliamos  textos

Cris Zelmanovits

Pensar sobre este assunto me trouxe à lembrança Santo Agostinho: “Se não me perguntam o que é o tempo, eu sei. Se me perguntam o que é, então não sei”.1 Sinto o mesmo ao tratar da avaliação dos textos dos alunos...

Por que me atrevo? De um lado porque o tema me interessa profundamente e de outro porque me sinto encorajada desde que Clarice Lispector escreveu gostar muito daquilo que desajeitadamente tenta um pequeno voo e cai sem graça no chão.

Tentado um pequeno voo
Tudo começa antes de ler, no momento em que tocamos os textos. Há um ritual em tudo isso. Nossas mãos podem se mover com delicadeza afetiva, quando reencontram um conhecido querido, ou com curiosidade ávida, quando se deparam com quem ainda não foram apresentadas.

Em ambos os casos, o que está em jogo é o respeito pela autoria, o reconhecimento do lugar do autor que, por definição, é “aquele de que alguém ou algo nasce”.2 Quem escreve sabe o quanto é difícil parir um texto. Neste sentido, dou as mãos ao jornalista Armando Nogueira que disse certa vez: “Eu não gosto de escrever, gosto de ter escrito3.

Pois bem, não basta engravidar de palavras, é preciso saber costurar, bordar, cortar, embalar, acarinhar. Tanto é que são comuns partos prematuros e até abortos. A escritora Lygia Fagundes Telles conta seu processo: “Ler, ler, ler. Escrever, escrever, escrever e rasgar muito. Eu rasguei muito4.

Se assim é com escritores profissionais, o que dizer os autores em formação, ou seja, dos alunos? Em primeiro lugar, que são autores! E mesmo se parirem algo aparentemente sem vida, é importante nunca perdermos de vista que “as cinzas guardam as últimas confidências do fogo5.

Mas o que será que decide se há ou não vida pulsando em um texto? O tempo, os prêmios literários, as editoras, os leitores, os críticos, a propaganda, a qualidade do texto em si, a fama do escritor?

Não sei responder como se dá no mundo, mas no caso da Olimpíada, toda uma engenharia foi pensada para cercar cuidadosamente a questão. Essa engenharia se sustenta em critérios de avaliação comuns a todas as instâncias avaliadoras.

Mãos que tocam os textos
PROFESSOR
A primeira avaliação acontece na sala de aula. O professor é a pessoa que sabe sobre o processo de trabalho vivido e sobre as diferentes situações de produção** pelas quais passaram os alunos. É ele, portanto, quem mais tem condições e elementos para conversar com os autores sobre os textos produzidos.

**O encaminhamento da sequência didática e seu enlace com as aprendizagens dos alunos pautam diferentes situações de produção. Se, por exemplo, pouca chance é dada aos alunos para que aprendam a olhar um texto escrito por eles próprios com a distância necessária, dificilmente conseguirão avaliar com autonomia se o que escreveram cumpre o objetivo proposto, se o modo como escreveram captura o leitor, se a organização do texto está bem construída, se as características do gênero foram respeitadas etc.

A conversa com os alunos pede preparação. Por isso, o professor precisa estudar cada um dos textos produzidos, fazer anotações, mapear a lápis as produções. Este estudo é, na verdade, uma leitura em diferentes camadas.

Na primeira camada, o professor entra em contato com o conteúdo geral do texto, isto é, busca compreender o que o autor quis dizer. Este é o momento de o professor conversar com seus botões: o que ele quis dizer está dito? Se sim, por quê? Se não, o que atravancou o caminho - excessos, ausências, problemas na sequência?

Para responder a essas questões, o professor vai para a segunda camada de leitura. Nela já é possível investigar a relação entre o todo e suas partes, deter-se em determinados trechos, descobrir como certas referências estudadas foram transpostas para os textos. É o momento em que se amplia a noção do que foi dito, pois entra em cena uma maior percepção sobre o como foi dito.

Na terceira camada, com o olhar bem mais apurado, o professor pode fazer um raio X do texto porque já sabe apontar ideias interessantes, momentos confusos, belas passagens, necessidade de reconstrução de trechos, níveis de proximidade e distância com relação ao gênero e incorreções.

O reconhecimento da existência de valiosas pedras que, no entanto, ainda pedem lapidação, anuncia dois gestos: aceitação e intervenção.

A aceitação se refere ao convite feito por Saramago – “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara6. A intervenção diz respeito ao momento de compartilhar com os autores as impressões de leitor mais experiente e, portanto, capaz de fazer apontamentos: reconhecer marcas de autoria, avaliar a adequação do texto ao gênero e à temática e observar as convenções da escrita.

Textos revisados e finalizados, é chegada a hora da avaliação final do professor, uma vez que é ele quem selecionará um dentre tantos para encaminhar à próxima instância avaliadora. Para realizar essa tarefa, recomenda-se que se baseie na Tabela de critérios. Além de entrar em cena no momento da seleção final, a Tabela oferece ao professor uma possibilidade que nenhuma outra instância avaliadora tem: a de apurar o olhar sobre os textos dos alunos para planejar intervenções. Para entender melhor essa ideia, basta pensar que as diferentes camadas de leitura sobre as quais conversamos anteriormente são a tradução da Tabela em versão expandida.

Ao analisar e tomar consciência das diferentes naturezas de intervenção necessárias a seu grupo de alunos, o professor ainda tem a chance de ver revelado o resultado do caminho percorrido. Com isso, poderá replanejar rotas e avançar cada vez mais. O princípio aqui é o mesmo do marinheiro: depois da primeira viagem, é possível fazer melhores antecipações sobre as próximas.

 

Palavras finais
Comecei esta conversa com uma pergunta – O que está em jogo quando avaliamos os textos dos alunos? – confesso não saber se dei conta de respondê-la satisfatoriamente. Mas sei, depois de todo o esforço, que o jogo tem nome e supõe a presença de dois participantes: de um lado autores e, de outro, leitores, ambos encarando a montagem de dois difíceis Quebra-cabeças – a construção de um texto e a avaliação da produção textual.

Por motivos óbvios, solidarizo-me neste momento com os autores e deixo para eles, junto com votos de boa-sorte, os conselhos de um grande mestre:

(...) procure, como se fosse o primeiro homem, dizer o que vê, vive, ama e perde. Evite de início as formas usuais e demasiado comuns: são essas as mais difíceis, pois precisa-se de uma força grande e amadurecida para se produzir algo de pessoal num domínio em que sobram tradições boas, algumas brilhantes. (...) relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isso com íntima e humilde sinceridade. Utilize, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de sua lembrança. Se a própria existência cotidiana lhe parecer pobre, não a acuse. Acuse a si mesmo, diga consigo que não é bastante poeta para extrair as suas riquezas. (...) Se depois dessa volta para dentro, desse ensimesmar-se, brotarem versos, não mais pensará em perguntar seja a quem for se são bons, (...) pois há de ver neles sua querida propriedade natural, um pedaço e uma voz de sua vida.7

1 Confissões de Santo Agostinho, XI, 14, in BORGES, Jorge Luis. Esse ofício do verso. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

2 Definição que está no Dicionário da Língua Portuguesa, organizado por Hildebrando de Lima, com revisão de Manuel Bandeira e José Baptista da Luz. São Paulo Editora S.A., 10ª edição.

3 O livro entre aspas: “o que se diz do que se lê”: frases para escritores, leitores, editores, livreiros e demais insensatos. Carlos Carrenho e Rodrigo Diogo Magno (organizadores). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005 il.

4 O livro entre aspas: “o que se diz do que se lê”: frases para escritores, leitores, editores, livreiros e demais insensatos. Carlos Carrenho e Rodrigo Diogo Magno (organizadores). Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005 il.

5 Epígrafe de Ramón Gómez de La Serna em Brasil, 1989. A chama de uma vela. Rio de Janeiro, Bertrand. Brasi, 1989.

6 (epígrafe do Livro dos Conselhos). SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

7 RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: Globo, 2001.

Cris Zelmanovits é pedagoga pela Universidade de São Paulo (USP), com especialização em Psicologia e em Arte (Instituto Lorenzo di Médici, Firenze, Itália). Integra a equipe de assessoria da coordenação do Cenpec. Consultora de projetos de literatura em redes de ensino, museus e outras instituições. Coordenadora de programas de formação de professores e gestores escolares para o trabalho com língua portuguesa junto a crianças e adolescentes.