[Paulo Ghiraldelli Jr.]

Platão disse que o homem é o bípede sem penas. Tendo escutado isso, Diógenes, o cão, depenou um galo e, atirando-o no terreiro, anunciou: “eis aí seu homem, Platão”.

Não importa se essa história contada pelo outro Diógenes, o historiador do século III, ocorreu ou não. O que é importante nela é que mostra a fragilidade da descrição de Platão. Nada da fortaleza da nomeação de Aristóteles, “o homem é o animal racional”. Essa segunda durou. Por quê? Platão, pai do essencialismo das Formas (ou Ideias), usou de uma definição fenomenológica. Aristóteles, o primeiro empirista de peso, usou de uma definição nitidamente essencialista. Tinha de vencer, mesmo que Platão arriscasse alguma outra definição, pois é provável que ele tivesse repetido o estilo. Afinal, da obra de Platão não tiramos nenhuma definição, a não ser a de barro: água mais argila.

A filosofia contemporânea enjoou antes da pergunta “o que é o homem?” que da reposta de Aristóteles. As feministas estão ainda um pouco lá para trás, pois querem falar sobre “o que é a mulher”. Possuem o seu público. Mas a resposta já foi dada a contento com a frase célebre de Simone de Beauvoir, “não se nasce mulher, torna-se”. Mulher e homem não se definem por razão para um e emoção para outro ou pipi para um e xoxota para outro. Caso se tentasse isso, um Diógenes qualquer poderia depenar sabe-se lá o que e jogar no terreiro, pondo tudo a perder. “Mulher” e “homem” são coisas construídas, inventadas e em contínua redescrição.

O que é o homem? A filosofia contemporânea pós-Heidegger sabe, como sempre se soube, que Sócrates, como disse Cícero, trouxe a filosofia dos céus para a terra. Sócrates fez surgir Platão e Aristóteles como filósofos com preocupação a respeito do homem, da cidade, e só então pesquisadores das estrelas. Sócrates fez a cosmologia se submeter aos problemas humanos e da polis. Nietzsche procurou pensar a filosofia novamente como cosmologia. Todavia, nem é por essa via que a pergunta sobre o homem tem caminhado. Ela de fato perdeu o prestígio. Ao pensarmos nela hoje, o fazemos por outros rincões. “Onde estamos quando estamos no mundo?”, pergunta Sloterdijk, hoje em dia. Fala-se aí de um “nós”, claro, portanto, homens, ou homens e mulheres. Mas é uma maneira de falar de nós que parece pedir a forma fraca de descrição, justamente a forma do Platão ironizado.

“Onde estamos (nós) quando estamos no mundo?” É uma maneira de falar do humano, mas de uma maneira que induz a uma resposta fenomenológica, não aristotélica. O “onde” é busca de espaço e, portanto, pede uma descrição de comportamentos e caracterização de lugar, não uma fórmula definicional essencialista.

O modo de Sloterdijk por a questão permite respostas variadas. Estou no mudo quando meu avião faz um pouso forçado no deserto e, então, sou obrigado a escutar sobre raposas. Esse bicho matreiro inventa de falar do “cativar e ter de cuidar do que se cativa”. Como vira e mexe cativamos, então estar no mundo é cuidar. O cuidado é o que fazemos, como homens. Somo seres do cuidado? Não preciso enfiar esse modo de conversar de jeito aristotélico, querendo dar essência ao homem. Posso saber tudo que preciso saber ao entender que estar no mudo é cuidar.

Antes de tudo, cuido para que eu possa cuidar mais. Cuido da continuidade do meu luxo. Sempre atuo como um “designer de interiores”, buscando refazer exo-úteros e cuidar do meu Outro. Da raposa para Sloterdijk, evitando Aristóteles, uma só linha de condução. Dá para notar?

Há o dentro e o fora. O fora me desampara, o dentro me devolve para o meu lar. Tudo que me põe no dentro é bom. Mas trata-se antes de tudo de uma condição um tanto que surreal, não um imperativo ético realista do tipo “Quatro patas ruim, duas patas bom”. A construção de exo-úteros é um modo de tentar manter relações de ressonância com o Outro, pois se sou uterino, amigo de placenta, nasci gêmeo e com “instinto de relações” (Martin Buber). Isso tudo diz.