(Prefácio do livro de Luiz Bacellar)

 

As aves aquáticas

vagam aqui e acolá

sem deixar pegadas

mas suas veredas nunca as esquecem.

 

DOGEN (1200-1253)

 

 

Há uma expressão de Zen que diz: “um espelho de boas qualidades é tão puro como a água que deixou de correr”. Isto, diz Takuzo Igarashi, representa o estado de mente em que se encontra o espírito do Zen, quando toca as coisas se refletem na “sabedoria que é como o espelho”, tão simples e tão claras, que é quando aparecem na água pura de um céu sem nuvens. O céu não está na água, nem a água está coberta de céu. A água pode estar correndo lentamente, de acordo com outra expressão do Zen: “um movimento em tranqüilidade”. Pode-se dizer que o Haicai é espelho da mente do poeta.

2.      A iluminação de Buddha se fez em três etapas. Na primeira parte da noite ele tomou conheci­mento da existência do antes, antes dos estados de consciência. Na segunda parte da noite ele adquiriu o conhecimento de como os seres passam dum estado de consciência (existência) a outro. Neste ponto ele percebeu a lei de dukkha (a lei do Sofrimento) e a lei da Causa do Sofrimento, a primeira e a segunda Nobres Verdades. Enfim, na ultima parte da noite, ele penetrou no conhecimento das causas subjacentes à existência, no processo das origens explicadoras da existência, na origem de tudo, inclusive do Universo. No Dhammapada, v. 153-154, Ele declara solene-mente: “Na última vigília da noite, cheio de compaixão pelos seres vivos, fixando meu espírito nas origens interdependentes e meditando acerca da ordem do devir e de sua cessação, ao sol nascente alcancei a iluminação suprema”.

3.      Satori é a experiência do Nirvana, a percepção de um instante. Nirvana significa a cessação do processo de vir-a-ser. É a paz, a tranqüilidade do céu sem nuvens e da água sossegada, mesmo em movimento. A absoluta realização na realidade do instante, na eternidade que o instante porta. Mesmo em um segundo de percepção podemos ver o Eterno. O Nirvana, o estado da mente de um Buddha, não é nem de aniquilação, nem de não-aniquilação, nem outra coisa: só inteligência viva e suprema da Atenção, porque o Buddha disse só haver um caminho para o Nirvana, que é o da Atenção (Sattipatana Suttra), e esta é a Quarta Nobre Verdade, ou Óctuplo Caminho.

 

A libertação repousa na existência da água em tranqüilidade refletindo um céu sem nuvens, ou seja, na Segunda Nobre Verdade, a verdade da Causa do Sofrimeiro, que é explicada por este vira-ser, por esta lei de causa e efeito chamada carma.

O Buddha definiu o carma: “Isto tendo sido, aquilo vem a ser”. Ou seja, não existe um eu substancial, nem alma, pois o processo de vir-a-ser está em completa mutação, e um sujeito não pode ser e estar mudando sempre em cada ponto. O “Eu” éum vir-a-ser, que é carma. O Carma é o que aparece, mesmo o Universo. Sem Carma, não é, portanto nada sofre mudança (ou lei do Sofrimento). O carma cria a roda do Sansara. “Nem Deus ou Brahma podem ser criadores da roda do Sansara; um fenômeno vazio segue seu curso sujeito a causas e condições”, disse o Buddha. Por isto se diz que o Budismo é ateu.

 

4.      Se saber é sabor, a questão “o que é satori” fica sem resposta. Primeiramente, porque poucos o experimentam. É falar do que não se sabe. No Budismo se diz: quem fala não sabe, quem sabe não fala. Só é possível a transmissão de uma experiência através da poesia, do Haicai. Sendo uma experiência, o satori é a apreensão, a percepção do lago velho num céu sem nuvens de Bashô, onde uma rã salta. O satori é a espada do silêncio que tudo penetra. Por isso tudo, mesmo os deuses não têm existência inerente, o Budismo é cheio de deuses, mas todos são vazios, criados por minha própria mente na hora de praticá-los. Vazios de existência inerente, mas cremos que verdadeiros. Pois o Despertar é uma coisa Súbita, Abrupta. Ser, sem objetivo nem proveito, é Despertar.

 

Quando o Buddha vinha de sua Iluminação encontrou um homem que lhe perguntou quem era e quem tinha sido seu mestre. O Buddha não teve mestres. “Sou Aquele que compreendeu o que devia ser compreendido, e abandonou o que devia ser abandonado. Eu sou o Buddha, o Desperto”. Satori significa “despertar para a verdade côsmíca”. Significa “a mente concentrada além do pensamento”, como diria Kapleau. E experimentar a dignidade da realidade e tornar cada atividade um fim em si mesmo.

5.      Budismo é religião? Zen é religião? Podemos dizer que sim e que não. Não como compreendemos as outras religiões, baseadas na fé. Se você tem de ter fé, no Budismo, será fé em si mesmo, e fé no Guru, um homem de carne e osso. E assim mesmo, é dito que você tem de observar o Guru vários anos até se decidir em considerá-lo mestre, Guru é o Buddha. Budismo é ciência, embora mista. Um interessante ensaio de Hannah Arendt, “Religião e política” nos parece muito esclarecedor a respeito. Não a respeito da crítica que ela faz do comunismo, chamando-o de “religião”. Mas do que ela diz acerca da ciência, a “crença no saber”.

 

6.     Na visão impura, há sofrimento e libertação do sofrimento, há céu e inferno. Na visão pura, não há nem sofrimento, nem libertação do sofrimento, nem céu, nem inferno, ou melhor há sofrimento, mas não há sofredor. Na visão pura não há nada que seja certo ou errado. Não há mesmo libertação, porque não há prisioneiro, nem o de que se libertar Não há dualidade.

 

7..     Mas satori é libertação. Libertação de quê? Talvez do próprio questionamento sobre o que satori seja. Libertação do questionador, do sujeito que põe a questão. Portanto, da dúvida e da certeza. Só há dúvida quando pensamos que as coisas podem ser de outro modo. Quando elas não são o que são. Quando as deixamos em paz, sem perguntas, elas não são certas ou erradas, culpadas ou inocentes de serem como tais. Aliás nada há o que perguntar, tudo é prazer e paz absoluta no satori, tudo é ação sem resultado no satori, tudo é. O horizonte da sabedoria e do concreto. Nada mais concreto do que o satori. Hegel, que na Fenomenologia do Espírito falou da “ascensão ao concreto”, sabia. O espírito absoluto é concreto, as pedras são abstratas, na sua indefinição, ignorância e surdez. O concreto é o que se encontra em consonância com o saber.

 

8.      Satori é liberdade. Nega Foucault que haja algo que seja por natureza libertador, já que a liberdade é uma prática. Não existe, diz ele, um espaço apropriado para a prática da liberdade, tal que esta prática possa ser exercida neste ou naquele lugar Mesmo quando um certo espaço é arquitetonicamente projetado para o agir libertário, como o Familistêre (1859) a que ele se refere, o fato de ninguém poder entrar ou sair sem ser visto por todos significava que ninguém era livre, pois todos fiscalizavam a todos, e a investigação representava um fenômeno policialesco (“a vontade de saber”) no campo complexo das relações de poder da distribuição espacial (The Foucault reader).

A liberdade pressupõe a felicidade, e é precisa­mente isto que a sociedade não pode tolerar. Ela até aceita a ilegalidade (a fim de que o poder policial seja possível e justificável). A liberdade é a espera de nada, é um conceito muito próximo do de “libertino”. Dizem que só o imperador era livre. As mais íntimas forças humanas são nega­das pela realidade e tudo contribui para o cerceamento. A liberdade: uma revolução, a irrupção violenta da subjetividade rebelde. Nada a impede. Ninguém pode prender um homem livre, dizia Krishnamurti; podem acorrentá-lo na fossa de uma masmorra, podem arrancar-lhes os olhos, mas interiormente ele permanecerá livre.

 

9.      Liberdade de quê? A liberdade não é um absoluto. A liberdade aqui significa espaço. Pequenas se fazem ás coisas, e amplos, incomensuráveis se dão os espaços da liberdade. Não se pode aprisionar a liberdade de pensamento, além do pequeno ego, aberto a um desconhecido devir, novo, significa ultrapassar esse limite. Não significa fazer o que bem se entende, mas assinar em baixo de suas próprias responsabilidades. Por isso, não existe liberdade sem amor, sem a prática dos símbolos de humanidade, dos vazios sem obstáculos da imaginação concreta de um mundo humano.

 

10.    Mestre Dogen escreveu uma frase enigmática que diz: “o tempo precisa estar comigo”. Se o tempo têm a característica de passar de hoje para amanhã, de ontem para hoje, ser é tempo. O haicai significa isso: “o tempo está comigo”. É uma apreensão do tempo. “Tarde de sol / o armador da rede / range devagar”. O que há de comum entre a tarde de sol, o armador de rede, o som de ranger e os três incluídos e o tempo presente, o tempo devagar; o amazônico é a rede, a tarde. O universo amazônico, a vida amazônica inteira pode estar contida nestes três pequenos versos de Luiz Bacellar. Do sol à terra, da tarde à rede, num golpe, devagar. Toda preguiça do tempo range nos seus gonzos, numa oposição lúcida entre o todo (a tarde) e o uno (rede), numa relação do homem com seu universo. A rede range, sob o sol que está fora. Significa isso, range sob o forte calor, não há corpo sobre a rede que não seja o do poeta que talvez durma, sonhe. O “ar” de “tarde” ressoa no “ar” de “armador” e de “devagar”. Mas é sempre “ar”. O universo encapsulado num grupo de nove palavras se liberta para sempre. Por isso o leitor de um haicai não deve esperar ler muito, o haicai melhor se dá num quadro na parede do que no feixe de páginas de um livro, O haicai é uma janela aberta para o caminho, para a música do Universo.

 

11.    O satori é, pois, aquilo de que não podemos falar, “aquilo de que se deve calar”, aquilo, aquele conceito para o qual só nos podemos aproximar cautelosamente. O satori é negativo, ou seja, sei o que ele não é. O satori é a verdade da poesia.

A poesia não fala de algo, ela é. Só a poesia faz falar o que é, a saber, a linguagem desperta. Por isso, sua luz é a linguagem, que é aquilo que sempre pode mais: revela a profunda agudez das coisas, ilumina o profundo mundo da realidade, a nudez das coisas, acionando o seu vigor, sua liberdade é da ordem da linguagem, que é anterior ao pensar. Só há pensamento quando há um pensador, portanto o aprisionamento do sujeito se dá quando o sujeito se recria ao pensar, ele não pode sair de sua prisão porque ele é a própria prisão, e com o “eu” não há espaço, não há nada além do centro, do núcleo do “eu”. Quando o “eu” some, há o satori. Ou seja, não havendo dualidade sujeito-objeto, há dissolução do sujeito na imensidão onde tudo é alegria, totalidade, tudo é poder da atenção, júbilo. O “eu~~ e sempre triste, o “não-eu” e sempre glória.