Para Cunha e Silva,  no seu centésimo sexto ano de nascimento


                            O leitor nem imagina o quanto comove a alguém que do próprio pai recebe um presente diferente. Diferente porque nada tem a ver com um objeto concreto de valor, um presente que não é uma camisa nova, um par de sapatos, um terno, um relógio nem outros tantos itens que deixam alguém bem contente por algum tempo. O presente que ganhei há quarenta e sete anos ninguém esquece nunca, pois já se tornou parte espiritual da minha vida. Ele não veio de uma fábrica, de uma indústria nem do balcão de uma loja elegante e sofisticada, dessas que deliciam os empedernidos consumistas de hoje.
                           O meu presente é atemporal, situa-se na esfera das estrelas e nos planos mais elevados da espiritualidade. Não é feito de matéria-prima, não tem etiqueta, nem foi posto em anúncio de alguma revista vistosa e de impressão impecável, como são estas belas publicações cheias de publicidades e apelos em formas de lindas mulheres com olhares sensuais, e que trazem entrevistas de pessoas famosas do momento.
                         Meu presente é de outra ordem. Feitos de palavras bem escolhidas e brotadas do fundo do coração. Fez-se de ritmos, de melodias , de musicalidade. Sua intenção, antes de ser estética, é a de exprimir sentimentos ternos, carinhosos, que combinam saudades, lágrimas e esperanças de mistura com uma alguma incerteza do futuro. Também a ele não faltam rimas que em parte ajudam a dar maior cadência ao todo harmonioso. 
                       Presente feito em gênero antigo, de limitados versos. Seu tema gira em torno da partida de alguém que vai para longes terras e para trás deixa os entes que mais preza,  bem como outras lembranças:  seus pais, irmãos, irmãs, amigos,  amores acabados, interrompidos, desejados, sonhados  e falhados. Deixa mais: a terra natal, os amigos de sua época, a fisionomia da sua cidade, seu calor, seu sotaque, seus costumes, sua história, sua cultura, seu canto no lar, suas leituras, alguns escritos juvenis publicados em jornais, seus ex-professores, seus parentes, suas ruas queridas, o Parnaíba, o Poti, suas diversões, seus passeios a pé com um primo, suas noites de amor, suas igrejas, sobretudo a de  São Benedito, suas construções, o Palácio de Karnak, suas praças, a Rio Branco e a Pedro II, o Liceu Piauiense, o Rex e o Theatro, seus logradouros que aprendeu a amar, seu então único prédio mais alto que dá para a Praça João Luís Ferreira.
                     Este presente o recebi pouco dias depois que saí de Teresina. É um soneto de meu pai de título “Talismã”. Pode não ser um poema de um grande poeta, mas afetivamente é como se o fosse  e por isso tem a perfeição das coisas simples e belas de que gostamos. Os poetas têm lá seu tanto de vaticínio, de profético. Foi publicado no jornal “Estado do Piauí”, jornal para o qual meu pai colaborou durante longos anos com artigos assinados e artigos de fundo. Eu próprio escrevi vários artigos para o velho e extinto jornal de Josípio Lustosa. Do poema tenho ainda um envelhecido recorte que guardo comigo há quase cinquenta anos.Eis o presente de meu pai escrito com as lágrimas da dor da partida de um filho que, com apenas dezoito anos, iria enfrentar a vida no Rio de Janeiro:


O Talismã.

Ao meu bom filho Cunha e Silva Filho

Cunha e Silva

Com lágrimas nos olhos te vi partir,
Com lenço branco pra mim acenavas
Da janela do avião a sorrir
Pra mim que, com tristeza, me deixavas.

Logo que o avião voo tomava,
Prolongado adeus me concedeste,
Emotivo, lágrimas enxugava
No lencinho que me ofereceste.

Este lencinho tenho-o guardado
E só quero revê-lo quando chegares,
Um dia, com teu sonho realizado.

O talismã da tua felicidade
É ele, meu filho, e, ao regressares,
Devolver-to-ei com ansiedade.