O pequeno detalhe
Por Bráulio Tavares Em: 09/11/2007, às 10H19
Há obras que lembram um pouco aquele símbolo do Yin-Yang em que se vê uma gota branca com um ponto preto no centro e uma gota preta com um ponto branco. Ou seja, um elemento que traz em seu núcleo sua própria negação. Parece um pouco com o conceito de “clinâmen” que já comentei aqui (“Clinâmen”, 22.12.2006), aquele pequeno elemento de desordem que, infiltrado num sistema de ordem quase absoluta, garante a este um mínimo de desequilíbrio que lhe assegura a vida, a instabilidade, evitando que se cristalize, imobilize, morra. O filme “La Jetée” de Chris Marker é uma história de ficção científica ambientada num futuro indefinido, e consiste inteiramente de planos fixos em preto-e-branco. Fotos que se sucedem na tela, enquanto a trilha sonora narra o enredo. Em certo momento, vemos em close-up a imagem de um olho que pisca em câmara lenta. É a única imagem em movimento do filme inteiro.
“A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg, é outro filme com uma belíssima fotografia em preto e branco, registrando as peripécias de um grupo de judeus cujas vidas são salvas por um industrial alemão, o qual, a pretexto de empregá-los em suas fábricas, consegue evitar sua deportação e morte pelos nazistas. Há um momento do filme em que uma garotinha perseguida pelos nazistas deixa esvoaçar um xale vermelho – única imagem colorida de um filme totalmente em P&B.
O filme “A última loucura de Mel Brooks” (“Silent Movie”), feito nos anos 1970, é um filme mudo, do começo ao fim: a história de um produtor que está fazendo um filme maluco, sem som. O único som em todo o filme é quando o produtor tenta convencer o mímico francês Marcel Marceau a participar do filme e este, ao telefone, grita: “Non!” Ou seja: num filme mudo, a única palavra é pronunciada justamente por um artista que em toda sua carreira se exprimiu através dos gestos e jamais emitiu um som sequer.
O livro “Dicionário Kazar” de Milorad Pavic foi publicado em duas edições quase idênticas, chamadas “edição feminina” e “edição masculina”. Há um único parágrafo diferente entre as duas, talvez para nos lembrar que o homem e a mulher são fundamentalmente idênticos a não ser por um detalhe... “et vive la différence!”
Por que estes artistas procedem assim, quando lhes seria mais cômodo seguir até o fim a regra que eles mesmos se auto-impuseram? Creio que isto tem a ver com o conceito de “contrainte” (palavra francesa intraduzível: algo como “auto-restrição, auto-limitação, regra proibitiva deliberadamente escolhida”), em que um autor impõe a si mesmo uma regra arbitrária e a segue ao pé da letra. Quando ele introduz uma exceção deliberada, que não é fruto do descuido nem da falta de alternativas, está dizendo que tanto a decisão de se impor uma regra quando a decisão de abrir uma exceção são decisões conscientes, são fruto de seu livre-arbítrio. Ele não cria apenas a obra, mas a lei que governa a obra, e a exceção que reafirma a liberdade do seu gesto criador.
“A Lista de Schindler”, de Steven Spielberg, é outro filme com uma belíssima fotografia em preto e branco, registrando as peripécias de um grupo de judeus cujas vidas são salvas por um industrial alemão, o qual, a pretexto de empregá-los em suas fábricas, consegue evitar sua deportação e morte pelos nazistas. Há um momento do filme em que uma garotinha perseguida pelos nazistas deixa esvoaçar um xale vermelho – única imagem colorida de um filme totalmente em P&B.
O filme “A última loucura de Mel Brooks” (“Silent Movie”), feito nos anos 1970, é um filme mudo, do começo ao fim: a história de um produtor que está fazendo um filme maluco, sem som. O único som em todo o filme é quando o produtor tenta convencer o mímico francês Marcel Marceau a participar do filme e este, ao telefone, grita: “Non!” Ou seja: num filme mudo, a única palavra é pronunciada justamente por um artista que em toda sua carreira se exprimiu através dos gestos e jamais emitiu um som sequer.
O livro “Dicionário Kazar” de Milorad Pavic foi publicado em duas edições quase idênticas, chamadas “edição feminina” e “edição masculina”. Há um único parágrafo diferente entre as duas, talvez para nos lembrar que o homem e a mulher são fundamentalmente idênticos a não ser por um detalhe... “et vive la différence!”
Por que estes artistas procedem assim, quando lhes seria mais cômodo seguir até o fim a regra que eles mesmos se auto-impuseram? Creio que isto tem a ver com o conceito de “contrainte” (palavra francesa intraduzível: algo como “auto-restrição, auto-limitação, regra proibitiva deliberadamente escolhida”), em que um autor impõe a si mesmo uma regra arbitrária e a segue ao pé da letra. Quando ele introduz uma exceção deliberada, que não é fruto do descuido nem da falta de alternativas, está dizendo que tanto a decisão de se impor uma regra quando a decisão de abrir uma exceção são decisões conscientes, são fruto de seu livre-arbítrio. Ele não cria apenas a obra, mas a lei que governa a obra, e a exceção que reafirma a liberdade do seu gesto criador.