ENTREVISTADO:

Francisco Miguel de Moura

DILSON LAGES:
Escritor, vamos começar o nosso diálogo conversando sobre o sistema literário piauiense. Fazer literatura quando o senhor publicou seu primeiro livro, Areias, 1966. Fazer literatura em 2007. O que mudou no sistema literário piauiense?

CHICO MIGUEL:
Entre 1966, ano do lançamento do meu primeiro livro, “Areias”, prefaciado por Fontes Ibiapina, e o ano de 2007, que acabamos de enterrar, há enorme diferença no fazer literatura, mesmo sem ter havido uma grande revolução estética em termos locais, ou mesmo de Brasil. Acho melhor começar mesmo de 1964, quando cheguei a Teresina, com ânimo de fixar residência definitiva.  Vinha do interior da Bahia, mas mesmo antes de ir para a Bahia, a serviço do Banco do Brasil, do qual fui funcionário desde 1957 até aposentar-me, já começaria a minha trajetória em Picos, como estudante. Porém era uma coisa isolada, cada um de per si. Em começos de 1965 conheci Hardi Filho, Herculano Morais e Tarciso Prado e, mais tarde, O.G. Rego de Carvalho, Manoel Paulo Nunes e H. Dobal, que haviam debandado de Teresina. Da Costa e Silva e Fontes Ibiapina eu já os conhecia, e era tudo da literatura do Piauí. Logo depois, Magalhães da Costa juntou-se ao nosso grupo que completa agora 40 anos de existência e resistência: o CLIP (Círculo Literário Piauiense). Naquele tempo não havia muitas gráficas, praticamente uma particular, do Albuquerque, e a Imprensa Oficial, duas livrarias, poucas escolas, nenhuma universidade. Imagine-se o trabalho de impingir literatura à classe média composta, grosso modo, de funcionários públicos, bancários, dentistas e médicos? Eram os nossos clientes/leitores. Tentamos mudar esse quadro e acredito que sensíveis mudanças houve, as quais marcam a geração dos anos 60, desafinada com a ditadura, mas nunca desesperançada. Fomos às escolas, às rádios, aos jornais com insistência.  Hoje, o que falta mesmo é editoras que invistam no autor, inclusive nos novos, assim como empresas distribuidoras como já vem fazendo o Ceará.


DILSON LAGES:
Ainda falando de sistema literário. Jornais e revistas literárias costumam possuir grande importância na formação literária de muitos escritores. Qual a importância deles para sua construção como literato?

CHICO MIGUEL:
Não há literatura sem crítica, sem prática, sem experimentos pessoais e com o público. Neste ponto a imprensa entra com o seu valor, a partir dos jornais de estudantes, em Picos, “A Flâmula” e “A Gazeta”. Lá publiquei os primeiros poemas e artigos. A imprensa sempre me foi importante. Entretanto, passando alguns anos no interior da Bahia, vi minha formação literária em compasso de espera. Se antes havia demorado, por ter nascido no interior e somente com vinte anos começasse a cursar o ginasial em Picos, mais três anos de Bahia (interior) retardariam o meu contato com o pouco que havia de literatura do Piauí. Nesse entretempo, lia, lia muito, livros e jornais. As leituras da adolescência foram poucas e sem critério. Convivência com artistas, nenhuma. A continuidade se deu em Teresina, que ainda não tinha as condições propícias de hoje. Não havia praticamente jornais que publicasse nossos trabalhos regulamente, o jornal “O Dia”, o mais antigo, teve a iniciativa de aceitar uma página literária criada pelo insigne contista e crítico Magalhães da Costa, de saudosa memória, juiz de direito que, mesmo do interior, mandava a matéria a um jornalista amigo assim como os colaboradores, entre os quais me incluo, para que saísse bem. Depois veio o poeta e jornalista Menezes de Morais que também fez muito no jornal “O Dia”, inclusive entrevistas. Revistas literárias, só o “Almanaque da Parnaíba” tiragem anual, e era muito bom, aceitava indistintamente colaborações. Daí foram sendo criados mais jornais, mais escolas, as rádios funcionavam bem, o Hardi Filho e o Herculano Moraes mantinham programas onde divulgavam livros, autores, entrevistas e recital de poemas, falo em especial da Pioneira e da Rádio Clube de Teresina. Mais algum tempo e veio a tevê, este potente meio de comunicação, mas nem sempre a serviço das causas artísticas e muito especialmente literárias. Ia esquecendo, o Teatro “4 de Setembro” nem era teatro, fora arrendado sine die para cinema. Pode? Dá para se sentir, nestas poucas referências, o atraso cultural do Piauí.

DILSON LAGES:
José de Alencar escreveu há bastante tempo, em 1873: “O bom livro no Brasil é, e por bom tempo será para seu autor, um desastre financeiro”. O livro hoje ainda é um desastre financeiro?

CHICO MIGUEL:
Depende do que se considera desastre financeiro. Nunca ouvi falar de algum escritor que tenha caído na miséria porque gastou o que possuía (salário, bens) em publicação de livros. O que o autor piauiense, e brasileiro também (as dificuldades são praticamente as mesmas, quer você more no Rio, São Paulo ou no Nordeste), o que o Autor deve considerar é que ser escritor não é uma profissão. Jornalista, roteirista, teatrólogo, sim, talvez; mas o escritor de literatura propriamente dita, não. Enquanto existir uma ou outra exceção, a regra é verdadeira: Érico Veríssimo, Jorge Amado, Assis Brasil e Paulo Coelho (este último, com as suas horrorosas concessões à mídia e ao público leitor). Dentre os meus livros, nenhum foi desastre financeiro: – nalguns perdi, noutros ganhei financeiramente e, por incrível que pareça, os que me deram prejuízo foram os publicados por editoras – alguns de prosa editados em São Paulo e Rio. Por outro lado, não faço literatura apenas por dinheiro, preciso de muito mais: da comunicação da beleza, da expressão verdadeira do que sou e do que me forma mais espírito, da certeza de que estou contribuindo para um mundo melhor, estética e eticamente. Porque, na grande literatura, a ética está presente, se bem que não explicita. Essas aspirações me fazem um pouco feliz, ao tempo em que sofro para realizar minha obra, tal como os verdadeiros artistas. O mundo sem arte é um caos. O mundo sem artistas deixará de existir humanamente.

DILSON LAGES:
O que, então, deve o escritor fazer para conquistar leitores?

CHICO MIGUEL:
Escrever bem, o que não quer dizer pendurar a gramática e o dicionário no pescoço, para não ultrapassar uma letra do que eles determinam. A língua padrão deve ser respeitada até o ponto em que as filigranas mais sutis da emoção, do sentimento, do pensamento assaltem o espírito do escritor, de maneira que só possa sair-se bem com uma forma singular criada pelo seu gênio. O escritor tem autonomia, liberdade e originalidade, ou deve adquiri-las e preservá-las. E, dentro do espaço e do tempo, construir a sua verdade, seu estilo, sua mensagem. Nós também criamos a língua com o novo e não com a novidade, mas um novo consentâneo com a origem- padrão. Às vezes, dessa forma, ressuscita o passado enterrado pelos gostos do momento. Fazer concessão ao público, nunca. Que concessão ele nos faz? Nenhuma. O escritor que pensa em fazer concessão a seu público, é melhor ir fazer crônica social, nunca poesia, conto e romance. Nunca, mesmo.

DILSON LAGES:
O senhor é um escritor em sintonia com as conquistas da Tecnologia. Faz, inclusive, uso da internet para divulgar sua obra. Qual o papel hoje da internet para a literatura?

CHICO MIGUEL:
O espaço e a tecnologia da internet formam um meio poderoso de divulgação da literatura, gratuitamente até agora. Mas não se faz literatura diretamente nela. Quem a utiliza está à frente dos reacionários, mas não significa nada historicamente. Como o jornal e a revista, ela é uma fonte de informação, meio de traquejo, de divulgação. Mas não garante que, no futuro, a história venha a considerar quem, apenas pelos sites e blogues de que dispõe, nos anais do pensamento e da arte da humanidade. Penso que, até certo ponto, a internet é descartável como o jornal. O livro, seja na forma tradicional ou em outras mais modernas, tem vida mais longa. Todos os meios subsistirão e terão seu valor, assim também a internet. Deixar de usar a tecnologia por capricho é tolice. O endereço da internet acaba com o regionalismo, todos os internautas, blogueiros e saitistas são universais, bons ou maus, não se limitam a região, país, língua, raça, e ninguém quer saber onde nasceu.  O importante é o que faz. Sua casa está no ar.

DILSON LAGES:
Vamos conversar agora sobre sua obra literária, especificamente sobre a obra poética. Para a conceituada crítica literária Nelly Novaes Coelho, a luta do escritor Chico Miguel com as palavras valoriza principalmente as questões existenciais. Segundo ela, a poesia de Chico Miguel “é uma denúncia contundente do mundo-cão em que vivemos”. Como o senhor interpreta as palavras da escritora?

CHICO MIGUEL:
Nelly Novaes Coelho acertou em cheio, mas minha poesia não é só isto; nela se encontra o viés do humor negro (embora alguns achem que é pessimismo puro), assim como a marca do sensualismo latino/brasileiro, aspectos evidenciados pelo grande crítico Fábio Lucas, os quais dão tempero à leitura da “contundente denúncia”, segundo a crítica que você citou.  E, embora eu seja cético, tenho minha própria e especial crença – talvez ainda vaga – na sobrevivência, de uma forma ou outra, de parte do ser humano, quando não eternamente, pelo menos por muito mais que o tempo limitado que conhecemos. A respeito, lembro o escritor Alex Carrel, francês exilado nos Estados Unidos, na época da II Grande Guerra, quando escreveu em “O Homem, Esse Desconhecido”: “O Criador não iria criar uma matéria tão sublime como homem para depois transformá-lo em nada” (citação de memória).

DILSON LAGES:
Já se escreveu que João Cabral e Drummond teriam grandes influências sobre sua poesia. Qual a influência desses autores sobre sua obra poética?

CHICO MIGUEL:
Sempre lutei para libertar-me das influências, ser original no que escrevo, gosto disto. Embora os teóricos teimem em dizer que não há como o escritor de hoje alcançar originalidade, indicando as figuras de intertextualidade e intratextualidade como inevitáveis. Eu teimo, vejo ao contrário. Creio que toda influência, depois dos limites da aprendizagem, sufoca, não serve. Assim, em “AREIAS” e “PEDRA EM SOBRESSALTO” tive influência da poesia drummondiana. Depois, escrevi “UNIVERSO DAS ÁGUAS” com o propósito de libertar-me dessa influência. E consegui. Considero o meu livro de poemas mais original, mais bem construído, mais sentido e sofrido. Posso estar enganado, mas penso assim. Depois, creio que se se observa alguma ressonância de leituras no meu texto, sou como qualquer poeta de hoje. Quem está imune a Camões, Fernando Pessoa, Drummond, João Cabral, Quintana, Bandeira, Olavo Bilac, Castro Alves, por exemplo? Ressonâncias sem exagero. Policio-me muito Sobre minha originalidade, quem me disse melhor foi Lygia Fagundes Telles: “Francisco Miguel de Moura é um poeta original, chega a ser insólito.”

DILSON LAGES:
Qual, em sua obra poética, o livro de sua predileção? Por quê?

CHICO MIGUEL:
Com relação à poesia já foi dito acima. No referente à prosa, considero “D.XICOTE”, também por sua originalidade, inclusive no nome, embora sendo um anagrama de “D. Quixote”, e por ser uma experiência de muitos anos, dentro do romance autobiográfico, com laivos de romance de formação (Bildungsroman), como disse o Prof. Francisco Venceslau dos Santos.

DILSON LAGES:
Sua poesia apresenta, no meu entendimento, apreciável fortuna crítica. O que a crítica escreveu sobre sua poesia vem auxiliando na escritura de sua obra?

CHICO MIGUEL:
Sem dúvida, a crítica quando bem intencionada, estimula. Tenho pronta uma “Fortuna Crítica”, com cerca de cem ou mais articulistas a respeito de minha obra, que será publicada ainda este ano. A obra foi aprovada pela Fundação Cultural do Piauí para receber incentivos fiscais. No final de 1997, pela Universidade Federal do Piauí, foi editado um livro com o título de “UM CANTO DE AMOR À TERRA E AO HOMEM”, coleção de ensaios de cinco professoras universitárias, sobre minha poesia.

DILSON LAGES:
E o exercício dessa crítica, o que o senhor faz com regularidade, atrapalha ou ajuda no fazer literário?

CHICO MIGUEL:
Ajuda e atrapalha quando feita ao mesmo tempo. Se estou criando em poesia, romance ou conto, só faço isso: literatura. Quando passo a escrever crítica, então abandono a literatura propriamente dita e me preparo para a atividade de crítico. Que deveria ser paga, mas não é. A crítica é necessária, porém não há espaço para ela, uma conseqüência da sociedade individualista, neoliberal, globalizada, que não a suporta. Depois, fazer crítica é a melhor maneira de “ganhar inimigos e não influenciar ninguém.”

 

DILSON LAGES:
O senhor produz gêneros diversos: crônica, poema conto, ensaio e romance. Escrever gêneros diversos facilita ou complica a vida do escritor?

CHICO MIGUEL:
No meu caso é muito bom, facilita, embora a crítica fuja do autor de obra numerosa. Não gosto de repetir; mudando de gênero, fico mais leve e mais solto. E então começo a produzir mais e melhor; é que o anterior já estava saturando meu cérebro. Ademais, sou polígrafo, como Machado de Assis e tantos outros escritores brasileiros, quiçá portugueses. Por fim, tenho uma frustração: nunca escrevi uma peça de teatro.

DILSON LAGES:
Gostaria que o senhor encerrasse a conversa recitando para os leitores/ouvintes do Portal Entre-textos, seu poema que mais o comove.

CHICO MIGUEL:
Este poema é quase uma profissão de fé, me comove muito:

   QUERENÇAS

Quero ter a vaidade dos caminhos:
– dão passagem mas pouco dão abrigo.
Quero ter o orgulho do tufão,
Quero ter a tristeza do jazigo.

Quero sentir da tarde a lassidão
e a solidão da noite no deserto,
das pobrezinhas flores – o perfume,
como as nuvens – ficar no céu aberto.

Quero ter emoções de amor secreto,
sentir como se sente uma paixão,
pra cantar glórias e chorar amores.

Quero viver do ideal concreto,
quero arrancar de mim o coração,
Incapaz de conter todas as dores.
 


Obrigado!