O morro da casa grande

20. As amêndoas de babaçu

Dílson Lages Monteiro

Abriu-se a atmosfera após os ciganos se evaporarem nos rastros das veredas. Clima de sossego se esticava na copa das árvores, nas patas dos bichos. Tinha-se a impressão de que a mangueira do pé no morro e a sapucaia centenária estavam maiores – os galhos mais largos, as folhas crescidas, em  verde alívio.

 

O meio-dia começava com o vapor da tarde imóvel esquentando a monotonia de um tempo quase estático. Reabria-se, livre de ameaças, a quitanda, onde a montanha de babaçu logo seria ensacada. Marciano olhava para ela e imaginava quantos sacos daria. Na última quinzena, acertara em cheio: 22. Babaçu demais! Mas já ouvira detrás das portas, Custódio reclamar que os negócios andavam capenga.

 

- Também, com tanta gente sentada na mesa, não tem comida que renda – escutava Maria Abelha dizer. – O patrão é mão aberta e assim termina pobre, pobre –  ela concluía, reforçando que quem tivesse de passagem pela mata, na Aurora, com fome não ficava. Bem diferente de outras fazendas em que nem um copo d’água se dava a viajante. Bem diferente.

 

Marciano mastigava amêndoas de babaçu na calçada da casa grande e arremessava o bagaço distante em cuspidas sucessivas. Os capões batiam asas e bicavam a areia, ciscando, ciscando, até não sobrar um farelo branco. O pequeno divertia-se com a fome dos frangos, mas desejava era ver o caminhão freando, freando. Os cassacos ensacariam o babaçu, costurariam os sacos de estopa. Grossas agulhas a fazerem voltas com novelos de barbante. Ele e o irmãozinho seguiriam viagem, curiando o povo que corria para a beira da rodagem, com o propósito de olhar o automóvel e quem nele se ia.

 

Que chegasse logo, a fim de ele não ir o tempo todo fazer xixi para o rumo do curral. Antônio Preto vez por outra, não escondia o sorriso e, vendo a arrumação do menino, gritava:

- Lá vem o caminhão, Marciano!

 

E ele se apressava em urinar, temendo molhar a boleia na viagem. Uma vez chegou a Barras doendo a barriga. Mal o caminhão parou, urinou-se. Urinou-se, mas não pediu pra Enoque parar o carro. Não pediu.

 

O menino mastigava o coco-babaçu como se dilacerasse o próprio tempo. Era uma forma de vencê-lo. Mastigava, mastigava. Abusado do ranço na garganta e depois de muito tossir, após engasgar-se com bagaço, abandonou a mastigação e entreteve-se a decifrar os ruídos que se debatiam no alto das árvores e se atiravam dos galhos ao vento.

 

Escutava zoada de carro. No silêncio profundo de uma terra inerte, para confundir-se, precisava ser surdo. E surdo não era. Percebeu o barulho aproximar-se e cessar. De uma hora para outra. Teria o caminhão parado? Talvez estivesse pelas bandas da Prensa. O som, elevando-se, elevando-se, repentinamente rompeu pelo capim seco. Era apenas uma cigarra.

 

Marciano desistira de esperar. Ia era contar os passos do jabuti gigantesco no quintal. Ia que o tempo esquentava e mal tinha almoçado para suportar sol tão quente na testa. Se ficasse ali por mais tempo, iria se ver de dor de urina.

 

Marciano desistira de esperar. Desistira de mastigar. Desistira.