O morro da casa grande

19. Os dedinhos nas folhas da janela

Dílson Lages Monteiro

- Fechem as janelas! Fechem as janelas! – gritou Alzira à gente da cozinha.
 
Alzira batendo as portas da venda. As portas de cedro encardido eram protegidas por grossas travas, no centro de cada uma das quatro saídas da venda. As grossas travas, já devidamente coladas à madeira nas hastes de metal da parede. A quitanda, no alto do morro, onde qualquer ameaça de longe se avistava.
 
Ciganos lutavam contra a surpresa da mata. Buscavam novo pouso do lado do Maranhão. Atravessariam o Parnaíba, a caminho do Brejo, onde outro grupo os esperava: a terra demarcada para mais uma temporada desprovida de andanças.
 
Genésio, alertando o patrão a que animais fossem aprisionados e a que se evitassem furtos, contara no café da manhã o trajeto do bando. Por volta do meio-dia, os mais de cem ciganos marchariam em terras da Aurora. Estavam arranchados no Abinadá, eles e o pânico, e de lá até a fazenda, cinco horas de ininterrupta caminhada.
 
- Da última vez que um bando zanzou aqui, até galinhas de inha Alzira roubaram. Em cigano não se confia nem de olhos abertos – recordou Genésio em tom de revolta, na sala de estar, acrescentando que, para as bandas da Prensa, um desses peregrinos buliu mocinha na beira de riacho. – a filha do Pecó, tão bonitinha.
 
- Pois avise a todos, cabra! Avise pra que estejam de sobreaviso, caso algum imprevisto. Mas essa gente vai apenas passar... Nada de atritos com ela. De todo modo, é bom se precaver – reagiu Custódio às preocupações de Genésio. – Vou à capoeira conferir quantos dias aproximados as arroubas de mandioca vão render e hoje transportar qualquer coisa de lá pra casa do forno, só depois que a ciganada passar e que eu despache o coco pra Barras – ordenou, virando-se à bilheira, de onde retirou água, lavou o rosto e silenciou.
 
Marciano frestava a luz e os espaços por onde conseguiria detalhar algum movimento, dali, detrás da janela, levemente aberta, para acompanhar a passagem do bando. Correu para ela no exato instante em que a avó gritara pelo povo da cozinha. Não queria se esconder, queria era olhar que povo estranho vagava o mundo sem ter onde parar. Que não se atrevesse a invadir a casa, porque a cartucheira estava na escapa, lotada de pólvora, e mandava bala.
 
Arquivaram-se nas divagações de Marciano o relato precavido de Genésio e o pavor de Alzira quando se falava em ciganos. Uma vez não ficou um peru e ainda levaram o pavão. O pior é que ninguém via os desgraçados roubarem.
 
O menino ouviu um falatório danado se aproximando, o trotar de animais arrastando poeira pelo ar e o coração pulou como se estivesse em cavalgada no alazão de carnaúba. Antes do tempo, chegavam antes do tempo e vovô pra capoeira. Alzira na quitanda na companhia de Maria Abelha e de Antônio Preto, que estava de plantão, desde o inicio da manhã. De plantão não aconteceria saque. Só se matassem Preto.
 
Da janela entreaberta, os dedinhos firmes segurando as bandas de cada folha, Marciano descobria o mundo cigano. O grupo achegou-se à casa da fazenda em numerosa fila. Idosos e crianças à frente; esquisita gente e sua legião de animais. Gente ou bicho? Eles tinham mesmo um jeito estranho. Uma velhinha, talvez a mãe de muitos, segurava a mão de uma menina, a qual viu os olhos de Marciano arregalados nas fendas da janela e os dedinhos pelo lado de fora, fazendo força se precisasse rapidamente fechá-la.
 
A menina sorriu, acenou e apontou para o papagaio no ombro da avó. O papagaio tagarelando: “Caminha cigana, caminha cigana”. Não era bicho, não era. Gente como ele, gente que não tinha onde morar e corria o mundo atrás de um pedaço de chão. Por que o avô não dava um pedacinho, já que a propriedade se juntava a outras propriedades de um dono só e tanta gente morava ali?
 
- Fecha a janela menino, fecha a janela! – gritou, de surpresa, Alzira, lembrando a ele que cigano roubava criança – Ainda quer ver tua mãe? Quer ver? Pois fecha essa janela!
 
O bando seguiu o destino sem grandes atropelos e a passagem deixou Marciano isolado num canto da sala por algumas horas, sem entender por que aquela gente rodava o mundo. Que o carro do coco viesse logo e esqueceria a menina que passou. O silêncio da sala interrompeu-se com uma das criadas contando para a sinhá:
 
- Dona Alzira, não é que os desgraçados roubaram de novo um peru. Roubaram e ninguém viu!
 
Marciano correu para o quintal. A franga pedrês estava intacta, ciscando ao lado do jabuti. Ainda hoje ela dormiria em Barras, nas galhas do pé de goiaba do quintal, na rua Grande.