O morro da casa grande

18. Brincar e olhar

Dílson Lages Monteiro

O dia se entrelaçava ao horizonte, igual à manhã em que Marciano chegara de férias: um renovar-se de sensações inéditas, embora se repetisse o  percurso de sempre.
 
Ele queria conferir as coisas como antes. Quando chegava, quando saia, guardava tudo nos olhos. Corria as retinas nos jabutis do jardim. Tinham crescido sim, tinham crescido. Fixava-se na gata preta da cozinha. Ainda amamentava as crias debaixo da mesa? Demorava-se a ver Tubarão cochilando indiferente aos mosquitos. Vivinho da silva. Vivinho! Muito tempo mesmo passava a contar as galinhas no quintal. Como eram muitas! Tudo isso no fundo dos olhos, mas precisava ir até o pé de serigoela, onde alguma galha velha dormia, abandonada no chão.
 
Guardava tudo nos olhos.
 
A manhã, de fato, começava. Antes que Alzira o chamasse à mesa, esquivou-se entre os quartos devagarinho. No curral, quase ligado à alcova dos avôs, Antônio Preto espremia as tetas da vaca; o bezerro separado em outro compartimento; o leite caindo no balde em espumas; o líquido em estado natural. Mais curiosidade que sabor. “Leite mugido faz bem à saúde”, dizia Genésio e Marciano não esquecia. Como queria crescer logo, tomava leite mugido, a contragosto do avô:
 
- Qualquer dia desses, esse menino adoece.
 
Do curral, Marciano correu ao fundo da casa, ao fundo onde curiava os galos que cantavam, ouriçados para brigar, disputando a posse de alguma galinha. Elevadas sobre uma pedra, em estacas rigidamente fincadas ao chão, três caçarolas transbordavam milho. Caçarolas para encher o papo das aves. Enquanto Alzira não aparecesse no batente da porta, antecipava a visão das aves se alimentando: distribuía o milho imaginário nas mãos abertas antes de em sonho espalhá-lo na terra, em voz que ia longe, em gritos circulares aos quatro cantos:
 
- Pi, Pi, Pi, Pi! - Pi, Pi, Pi, Pi!
 
Gritando, Marciano reunia sua multidão de agregados. Ao som do chamado, seu exército de servos agrupava-se parado na calçada ou abaixo dela, parado, parado. Do alto, o pequeno levantava os ombros e a cabeça:
 
- Obedeça o Coronel!
 
Sobreveu-lhe a lembrança do amigo Jarbas com um machado sobre as costas, acompanhando a mãe mata adentro. Os mesmos oito anos que ele, e quebrava coco. Tentara aprender com ele às escondidas e quase cortara gravemente um dedo. Quebrar coco não era pra menino, mas Jarbas quebrava; ele e a curiola toda com quem Maciano jogava bola, com quem banhava no açude e no Tanque. No dia em que fosse coronel, distribuiria tudo da quitada e menino não quebrava coco. E se distribuísse? O que venderia na quitanda? Era pequeno demais pra entender dessas coisas.
 
- Obedeça o coronel! – repetia, agora sem mais conseguir a atenção das aves, que se vendo enganadas, dispersavam-se pelo quintal.
 
Ainda assim, prosseguia gritando até se cansar, até interromper a voz, para admirar a mistura de cores nas penas do pavão e o desespero dos perus, zangados de fome.
 
Enoque viria. Marciano aproveitava cada piscar do sol para brincar. Brincar era como olhar. Uma ou outra atividade bastaria para dia tão inesgotável de ânsias e incertezas. Fazer tudo o que o tempo permitisse: subir em cada árvore baixa do quintal; banhar no Tanque ou no açude;  correr montado em seu alazão de carnaúba; respirar o mato seco ou a massa de mandioca na casa do forno; ver do topo do morro as fileiras de babaçus conversando com o vento em voz que só criança entende. Fazer tudo: brincar e olhar.