O morro da casa grande

14. Debaixo do pontião

Dílson Lages Monteiro

Custódio punha a mão sobre a testa, inclinava levemente o rosto para o chão e confabulava consigo, em silêncio que barulho nenhum interrompia, ou falando a si mesmo em voz baixa, espécie de desabafo, sempre que a imagem de Izabel lhe ocorria. Os urubus em volta do que um dia fora um amor de pessoa. Não esquecia a cena e evitava passar pelos caminhos do Junco.

 

Quando decidiu cessar as buscas, flertou o brilho fosco da lua e tratou de reunir os homens -  precisavam descansar um pouco para reiniciar a procura sob a luz da manhã; afinal, vasculharam cada grão de areia e cada moita, e entre a Aurora e a Renascer, o homem não estava. Ia ter com Marieta, levar conforto e reacender nela a esperança de Cremílson vivo, ainda que nisso não cresse.

 

O que diacho de fato acontecera? Alguma onça sedenta e faminta talvez se saciara... As onças andavam aos bandos, querendo água, querendo carne, todos os anos, assim que os córregos minguavam. A sede e a fome tão grandes, e tão escassos a água e os alimentos que as pintadas encontravam nos açudes e nas cacimbas da região, assim como nos bichos, à beira das grotas, a oportunidade de se saciar. O velho Abelha localizara duas boiando na cacimba do quintal de casa . “Tentando beber se afogaram”,  repetia, segurando o toco de cigarro no canto da boca. Passado o susto, não tirava a cartucheira das costas... presente do coronel Alberto, em boa hora. 

 

Custódio estava confuso. Em que pensar diante do insucesso das buscas? Não remoia nem mais uma gota de fé em suposto assassino se denunciar, caso  tivessem deveras assassinado o homem como presumira.  Assassino entre os agregados era hipótese descartada.

 

Atendendo às ordens do patrão, Genésio reunira todos os agregados. Em fila, de foices em mãos, a pé, seguiam Custódio montado no alazão, em cujas pegadas estava tubarão; cachorro de caça, cachorro de guarda. Tão afeiçoado ao dono que uivava para não dormir nas calçadas da casa grande... uivava uivos de desespero que logo silenciavam, graças às reses no morro a entretê-lo... 

 

Rumavam para a Cigarra, ora em silêncio maior que  tarde de sol a pino, ora numa boataria que mais parecia as preces que faziam os romeiros da região, ano-a-ano, na estrada do Juazeiro de Padim Ciço. Rumavam quando uma voz mais alta se pronunciou, apressada para falar antes que o povo se dispersasse:

 

- Genésio, homi, Cremílson num saía da beira de potião pescando quando eles tavam rasos pra peixe. A água nessas grotas ta rasinha, rasinha. O homi não tará debaixo de um? – interpelou Chico Pereira, acrescentando – Será que num tá debaixo daquele ali?

 

Genésio, atento à expressão de espanto do coronel, pediu que Pereira fosse até o pontilhão a uns vinte metros adiante.

 

- Taqui o homi, coronel. Taqui! Tá morto, enroscado na rede de pesca, coberto de salsa, disse Chico, tremendo o canto dos lábios, arrastando logo o corpo para a margem da rodagem.

 

Os agricultores se entreolharam e, atendendo a ordem de Genésio, que se afastara do corpo, para melhor analisar a situação, em meio aos gritos de “cabra safado”, de “assassino”, cercaram Pereira, que nada disse. Apenas olhou para o coronel, que chorava ao lado do corpo de Cremílson. O golpe certeiro cortara de morte o pescoço. Nem ao menos chance de defesa tivera. Covarde, covarde como todo criminoso.

 

Assim as horas que se antecederam ao olhar de Custódio, agora fixo nas paredes do cemitério e nos espaços restantes para mais uma cova; as horas antes do encontro entre Coronel e Marieta, na porta da Cigarra, para anunciar a vontade de Deus.

 

...

 

Custódio vivia na companhia de Cremílson e se recordar dele naquela situação era sentir a própria mata sangrar. Cremílson se confundia com o assobio das palhas no alto das palmeiras, com o assobio da curva na montaria do horizonte, com a lembrança da estrada – a que toda tarde se despedia do clarão do céu quando o filho de Marieta tomava o caminho da Cigarra. Cremílson era o homem distanciando-se da quitanda, misturando-se à escuridão  em sua confusão de sons e incertezas.

 

Que preparassem a cova! Estava escrito!

 

 A noite ia encorpando-se. Maior que o coração do desejo.

 

(Postado por R. Samuel)