O morro da casa grande

O morro da casa grande

Capítulo 13: Os ombros curvados

Dílson Lages Monteiro

 (Postado por R. Samuel)

 

Quatro horas. Quatro horas embrenhados entre fileiras de babaçus, entre unhas de gatos pendentes, entre sombras de árvores em cujas copas os olhos se perdiam. Pedro Catitu assustou-se umas poucas de vezes: bichos sumindo em disparada. Ligeiros se enfurnavam em bancos de areia, na entrada de cupinzeiros. Aquilo lá era hora pra perseguir pegada de tatu... Tinha sim que gritar:

 

- Cumpade Cremílson! Ê cumpadeeee! Ê Cremilsoooon!

 

Tinha que gritar. A desesperança pesava nos ombros curvados do grupo de agricultores, mas tinham de gritar. Os gritos se fundiam a outros gritos; ao eco melódico da vegetação e à resposta do vazio. Cremílson morto, disso não se duvidava. O corpo, onde?

 

Catitu, esquecido das caças que a noite o forçara a abandonar, dava-se conta de alguma anormalidade. O coronel juntava os homens – notícia boa. Ou ruim. Depois de umas quatro horas, tempo medido certinho, tempo medido olhando para o céu.

 

A lua irradiava fraca luz sonolenta, cortada de quando em vez pela penumbra de nuvem passageira. Lua sonolenta, mas suficiente para quem se habituara ao indefinido da quase escuridão enxergar ou tatear, ainda que vagamente, areia e mato seco pisoteados ou qualquer pista de luta corporal. 

 

Se ao menos se soubesse onde se avistou o desaparecido pela última vez? Uns diziam nas Contendas; outros, na Prensa; alguns, para as bandas da Renascer. Saber mesmo ninguém sabia. Restava a quem procurava atirar-se por entre árvores frondosas, por entre caatinga afiada, por entre morros e planícies. Por onde a força alcance.

 

Custódio ia, a cada mato roçado nos caminhos que se abriam, buscando forças – a própria notícia do sumiço sugara as energias a tal ponto de, confuso, esgotar a crença de Cremílson vivo. Ou mesmo a de encontrar o corpo. Sorte que em derredor, procurando, procurando, acumulavam-se, dispostos, em meio aos tragos de cana, dezenas de agregados, conhecedores de cada trilha. Quem sabe Cremílson não estaria perto de casa? Eles metidos nas profundezas de cada palmo de terra da Cigarra, menos no entorno da casa grande.

 

Com a  velha Maria Izabel fora assim: tão longe do barraco vasculharam, tão perto estava. Coronel se queixava de sequer ter garantido um enterro à mulher tão querida pela família. Izabel era de casa. Assistiu aos filhos e aos netos como se netos e filhos dela fossem. Tinha por Marciano, de quem cuidara em bebê e a quem vira logo depois do parto, ainda manchado de sangue, amor de mãe. Quando diziam a ela que o pequeno não vingava, partia em defesa rápida:

 

- Vinga e vai ser grande!

 

Maria Izabel, para os da casa grande da Aurora, era Maria-encanto. No jeito, a presença encobria a fala às vezes arranhada, a fala que o lábio leporino comprimia. Maria Isabel varria o terreiro, passava a roupa, castrava os frangos... A cabeça já se enfeitava de fios de lã quando ela desapareceu. As aves de rapina esperaram a fome abrir o céu, esperaram a sede enfraquecer o sangue...

 

Muitos os dias em que espalhados ou reunidos, homens e mulheres perderam sono e arderam ao sol para localizar Izabel. Tão longe da casinha de pau-a-pique dela se enfiaram, e a mulher tão perto de casa estava; Custódio não cansava de lastimar. Acharam-na quando cachorros latiam para uma revoada de urubus. Acharam os ossos de Maria Izabel. Acharam onde hoje um cercado de talos indica que ali alguém sucumbiu.

 

Ela se tornou lembrada na região pela triste sina, e um cordelista cearense, que cruzava a mata com seus folhetos, o tambô na garupa do cavalo,  certa feita ouviu Marciano, saudoso, contar o fim de Maria Izabel, e compôs o arremedo de versos, que, vendendo cachaça e cordéis,  costumava declamar:

 

 “Maria Isabel, de cabelos de lã,

adormecida nas veredas do Junco, ontem e amanhã...

 

Adormeceu meu céu a dor

Meu, seu, de cada leitor

No reflexo do desaparecimento

De Maria Isabel.

 

Inda a procuram nas trilhas da mata.

Almas inconformadas inda gritam sem eco.

Inda cavalgam valentes

No Morro da Bomba

Debaixo do pé de crioli.

 

Nas sombras das árvores

No esconderijo das nuvens

Submersas nas águas

Inda procuram réstias de roupas

Fios de cabelos rastros de gente.

 

Deus aparece e desaparece

Nas preces de todo pedinte:

Maria Isabel desmontada em peças

Na gula furiosa dos urubus.

 

Desaparece e aparece

Inda transpira pelo vento do quintal

Onde as cirúrgicas mãos

Sob os olhos grandes dos meninos

Inda transpira o pó das vassourinhas

E dos alecrins varrendo o morro

E a fertilidade da terra.