O morro da casa-grande

                          [Rosidelma Fraga - especial para o Entretextos]

O título de O morro da casa-grande, um romance de espaço, do escritor brasileiro Dílson Lages Monteiro (2012), por um instante anterior a minha degustação das palavras, levou-me para o título de Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre (1933). Não obstante, o texto de Monteiro trouxe-me outra dimensão de ordem dos coronéis nas propriedades de Barras do Marataoã - Piauí, não completamente distante do patriarcalismo daquele romance. O estilo lírico banha as memórias narradas do romance em questão, o que parece ser um convite ao leitor que se vê acorrentado nas linhas do primeiro capítulo da obra. Elejo dois pontos que mais despertaram atenção: a memória histórica e as coreografias do lirismo no âmbito da narração e da personagem de ficção.
Paulatinamente ao título, vale mencionar a correlação semiótica entre as epígrafes e o romance. Elas não são paratextos isolados, uma vez que há uma sólida comunhão delas com a essência da narrativa. De Carlos Drummond de Andrade, o romancista citou “A matriz desmoronada” e nesta o poeta mineiro cantou a efemeridade e longevidade das casas que morrem com o tempo. No capítulo “Cristo em pó”, o leitor depara-se com a ordem do padre para a demolição da igreja e a dor da multidão ao ver a imagem de cristo esfarelado, conforme a fala da vendedora de espanadores. Em Drummond, a epígrafe compara que casas são como pessoas. No romance não é diferente, pois almas diversas são esfareladas e esfaceladas em derramamento de lágrimas quando presenciam a imagem de Cristo fragmentado e demolido e sabem que a próxima tragédia será a Matriz de Barras (PI):
 
 
O estrondo dividiu a multidão curiosa e surgiu, em uma rapidez de assustar, gente de todas as ruas, às lágrimas, querendo levar para casa parte de Nosso Senhor, desfeito em minúsculos pedaços e em pó. Estava feito. Que a obra começasse. Em sessenta dias, as largas paredes da igreja da matriz seriam pó como já era o Cristo (MONTEIRO, 2012, p. 125).
 
 
As últimas imagens da obra rasgam-se em termos de lirismo narrativo e pinceladas dramáticas, além de casarem com as epígrafes dos poetas Drummond e Patativa do Assaré. Assim como na citação do poeta nordestino, em Monteiro, o narrador denuncia uma face da história em que o povo menos favorecido e os humildes foram colocados à margem em decorrência de deliberações dos “donos do poder” que imperou em Barras do Marataoã. Mais uma vez, enfatizo o título “Cristo em pó” que também funciona como metonímia para representar as mágoas e o coração partido[1] do povo, sem contar a dor de Deusimar no vigésimo quinto capítulo, onde o leitor confirma a veracidade da citação que “casas são como pessoas”. Relaciono o romance com esses paratextos porque acredito que são motes estratégicos de uma narrativa ficcional com marcas históricas. E sobre tais aspectos, recorto a outra epígrafe de Eric Neponuceno sobre “Quando a mentira é verdade”. Em O morro da casa-grande, a literatura brota como testemunho da arte da palavra para contar as verdades e, como Neponuceno: é ela “a melhor maneira de mostrar as realidades que a realidade oculta”.
Entre História e ficção, pode-se dizer que, em O morro da casa-grande, Coronéis e empregados (Genésio), a cidade de Barras e as fazendas projetam-se a palo seco, diria João Cabral de Melo Neto se aqui estivesse entre nós. O projeto de escritura histórica é seco, medido e racional, mas a forma como a narrativa é contada, sem dúvida, é de um lirismo derramado. Tal planejamento artificioso e estético sugere a finalidade de comunicar ao leitor a relevância de seres ou patrimônios históricos sem importância em detrimento dos coronéis que mandavam. Todavia, ao leitor menos experiente, tais figuras de poder parecem ter menor destaque no romance.
O narrador eleva personagens marginalizados pela história, os quais figuram como ficcionais como é o arquétipo do romance à clef [2], a exemplo de Genésio, dona Deusimar e seu bisneto, Custódio e, sobretudo Clemílson. Curiosamente, observe o leitor que o narrador empregou sete capítulos para distanciar as faces dos coronéis e focar no desaparecimento de Clemílson que vai de “Sangue da terra” à tragédia em “A cadeira sobre o morro”, onde são narradas muitas histórias, casos de Maria-encanto na casa-grande da Aurora, os quais viraram cordel cearense, resgatando os folhetos sobre o fim de Maria Izabel.
Casos de assombração contados nas fazendas, à beira do rio Marataoã, bem como a carta de Margarida endereçada a Custódio tornam-se fatos tão relevantes para o romance quanto os fatos históricos. Na epístola de Margarida, o leitor pode conferir que os realces sobre os banhos dos meninos nos açudes, a paz da família em Barras, os alimentos trazidos por Genésio, o pôr-do-sol em Marataoã e o casamento da filha de Custódio ganham evidência tanto quanto os boatos sobre a demolição da igreja, o fato histórico. No âmbito desses acontecimentos, a escritura de O morro da casa-grande parte da técnica de encaixe porquanto narrador concede voz a outros personagens que contam casos e histórias no morro e tal mecanismo no enredo parece interromper o fato histórico, transparecendo a ideia de novos conflitos que vão sendo encadeados com um conflito principal. Do conceito de encaixe, explica Tzvetan Todorov (1970) em As estruturas narrativas:
 
 
 
A aparição de uma nova personagem ocasiona infalivelmente a interrupção da história precedente, para que uma nova história, a que explica o ‘eu estou aqui agora’ da nova personagem, nos seja contada. Uma história segunda é englobada na primeira; esse processo se chama encaixe. (TODOROV, 1970: 123).
 
 
Este recurso empregado pelo narrador de O morro da casa-grande remete à mesma estratégia narrativa do Memorial do convento (1982), de José Saramago quando distanciou a figura de D. João V para dar voz aos menores, marginalizados pela História: Baltazar, Blimunda e os trabalhadores braçais na construção do Convento de Mafra. Não diferente de Saramago, Monteiro arquitetou seu romance de forma a priorizar figuras como a de Genésio para desmascarar o abuso de poder imposto pela figura do coronelismo. Ironicamente, o narrador, inclusive, ilustra que alguns coronéis são chamados assim por imposição e respeito, mas não deixam de ser inaudíveis igualmente a um “João-ninguém”:
 
 
 
Coronel era gente que mandava [...] Gente que mandava. Mas conhecia muita gente a quem se chamava de coronel e não tinha terra nem debaixo das unhas. O Lourival do Mercado. Nem o nome mesmo dele se sabia (MONTEIRO, 2012, p.95).
 
 
Pode-se comprovar, a partir da voz narrada, que a figura dos coronéis foi tão esfarelada quanto às paredes do Altar-mor, o Cristo em pó e a Matriz de Nossa Senhora da Conceição das Barras. E aqui, examina-se muito bem o projeto de um poeta-narrador que soube empregar os ensinamentos de Aristóteles (1987) quando escreveu que o objetivo da história é mostrar os fatos como aconteceram, ao passo que o do poeta é narrar como gostaria que tivesse acontecido.
Entre a ficção e a história do/no romance, nossa memória de leitor não consegue esquecer-se de como o narrador enfatizou Genésio, a Igreja da Matriz, a cidade de Barras, o menino Mariano e sua bisavó Deusimar, Clemílson, Tonho Preto, Florisbela e seu leque poético, o Coveiro do Cemitério da Confraria, a multidão defronte a Matriz em relação à figura dos coronéis e a casa-grande que ficam aquém dos personagens citados. Por isso a referência ao título Casa-grande & Senzala algures. Numa rápida comparação, dir-se-ia que, em Monteiro, a senzala (os humildes) representaria a estrela maior e a casa-grande (coronéis) o fenômeno de menor importância.
Saliento ainda que a ênfase do narrador para a antiga cidade de Barras do Marataoã é tão delineada que o rio de mesmo nome parece adquirir vida humana em forma de lirismo puro: “O Marataoã parece que saiu do lugar – repetia a balconista, com o leque nas mãos. O leque dançando, dançando, ao som seco e abafado do vento. O leque atritando o ar em coreografias” (MONTEIRO, 2012, p.13). Esta poeticidade pode ser colhida também nas fotografias que compõem o romance, tais como “O pôr-do-sol no Marataoã” (p.56) e as duas imagens do “Rio Marataoã” (p.105).
Ultimando a minha impressão sobre o romance, na voz do cantor cearense Raimundo Fagner e ao efeito sacramental da música Ave Maria de Gounod, rememoro a dor dilacerada de Deusimar e suas lágrimas, o coroinha Marciano desesperado quando ouve a notícia acerca da demolição da igreja, o descontentamento da vendedora de espanadores na Rua do Caquengo, a fragmentação da fala de Genésio ao ver o caminhão de Ernesto Castelo Branco defronte a Matriz e o desejo do povo para salvar o Cristo. Nota-se que a sensação de perda e de ausência constitui-se o registro das gerações que arquitetaram a Matriz de Nossa Senhora da Conceição das Barras no morro da casa-grande, onde se aproxima da profecia bíblica que “tudo vindo do pó a ele retornará” como se as paredes fossem vidas. A fim de reter a imagem do passado, o corpo de Deusimar “adiantava-se à frente do espírito; os olhos querendo guardar a derradeira visão do altar” porque naquelas paredes tinham “uma vida inteira ali e a igreja era sua família” (MONTEIRO, 2012, p.110-111).
Por meio da memória viva e da subjetividade individual, o romancista resgata um passado que borbulha na eternidade do tempo. Narrar o passado histórico e experiências individuais é uma forma de reter o tempo na memória e, quiçá, eternizá-lo (RICOUER, 1979). Essa retenção do tempo perpassa no romance, nas imagens das fotografias (outro código de linguagem) e, aos poucos, vai sendo reescrita e reinterpretada nos moldes da ficção em densidade lírica, mesclando romance e poesia. A identidade patrimonial da terra sacramenta-se na memória de um romancista que não consegue desvencilhar de sua grande sensibilidade de poeta, descortinando para o leitor um documentário histórico de várias gerações que viram os sonhos de fé e devoção destruídos. O leitor de alma vazada não consegue ficar alheio ao sentimento mais cruel e melancólico dos personagens que protagonizaram a amargura proveniente da demolição do lugar sagrado das famílias religiosas em Barras, Piauí.
Tardiamente, cumprimento o autor pela estreia no gênero, asseverando que a minha breve e descuidada conferência sobre alguns capítulos de O morro da casa-grande é minúscula frente às múltiplas apreciações e exegeses que este grande romance proporciona ao leitor. Parabéns, Dílson Lages Monteiro.
 
 
Por Rosidelma Fraga – 01/06/2012.
[http://rosidelmapoeta.blogspot.com].
 


[1] Expressão emprestada do título da obra de Davi Arrigucci, em homenagem a obra de Drummond.
[2] Cf. definição de Francisco Miguel de Moura, "O morro da casa-grande é um romance histórico, onde campeia a poesia e cai a ficção para o seu degrau estritamente necessário, como todo romance à clef".