O morro da casa grande, 15

15. A cadeira sobre o morro

Dílson Lages Monteiro

À tragédia, seguiu-se o silêncio de olhares cabisbaixos, de olhares interiores em busca de respostas inexistentes. Cremílson, bom pai, bom filho, bom esposo; bondoso de nascença, e morto tão covardemente sem explicações. O silêncio enlutou a farinhada, suspensa por dois dias – e quase ninguém saiu de suas casas, a não ser para apertar a mão de coronel Custódio, visitar dona Alzira na Cigarra, tirar água no poço ou comprar querosena, fumo e gênero alimentício na quitanda da Aurora.

 

Coronel Alberto cismava em duvidar. Nem o corpo quisera ver. Nas terras dele, terras de seu filho, debaixo das próprias barbas, crime de um agregado era mesmo para duvidar. Noutros tempos, nem imaginava o que seria do assassino... Mas o delegado já tomara de conta do infeliz. Que a juíza desse a sentença máxima ao condenado! Crianças ficaram órfãs. A sobrinha, o que de mais valioso ainda possuía perdera. Que o infeliz nunca mais desse a cara por aquelas bandas... Tão bem criado por Cândida e foi dar no traste perverso e dissimulado que matou sem chance alguma de defesa. Que nunca mais ousasse cruzar com ele.

 

No fundo, no fundo, Alberto Pires reconhecia: estava de carreira tirada. Do topo dos oitenta anos, queria mesmo era balançar-se na cadeira sobre o morro, rir das traquinagens dos netos, pastorear com a visão uma ou outra rês e ir ao mato colher embiras para fazer chapéu ou peas. Os dias se resumiam a isso desde quando deixou a Renascer, onde nascera e  vivera até alguns anos, e para onde voltaria apenas quando sentisse que a terra e o céu definitivamente se misturariam.

 

 - Genésio, me chame aí o Custódio, aquela vaca pintada anda triste desde ontem. Se não estiver doente o cão pinta – pediu o coronel, em voz que não se distiguia gritando ou simplesmente falando, em voz já sem forças para grandes esforços.

 

Voz apagada, mas de olhos e pensamentos vivos. Vendo o vulto imaginário de Cremílson correndo pelos campos, pôs a vida na balança. O que fizera? Estava ali no topo do morro, torcendo para o tempo parar, e o que fizera? Criara filhos e bichos. Multiplicara-se e isso já valia muito. Não cogitava mais sobre o futuro, nem sobre os descendentes que não conheceria... O passado bastava.

 

Ocorreu-lhe o pai, a mãe, as tias – todos, vagas recordações, depositadas no coração cansado e no morro defronte às planícies da centenária Casa Renascer. O morro, coberto de cruzes – cruzes no interior da pequena mureta em seus 10 metros quadrados e fora dela. Do lado de fora, os moradores sem nenhuma indicação – conhecer quem ali repousava somente gente da família dos mortos -, do lado de dentro, os donos da terra. Túmulos com inscrição no cimento, túmulos com inscrição em mármore

 

 Lembrou-se  dos irmãos em terras adjacentes, espalhados, espalhados nas fazendas que herdaram entre Barras e o Retiro da Boa Esperança. Terra pra vida toda? As suas estavam reduzidas a bem menos do que o legado familiar lhe reservara. A bem menos, não tivesse se metido em contendas políticas, não tivesse escurraçado pras bandas de Miguelalves os safados doidos pra afanar o que sempre fora seu, ainda apreciaria a paisagem de sua Melancias nas Cabeceiras do primo Zu Batista, nas Cabeceiras do amigo Dodô Veloso; ainda apreciaria todas as terras agora na posse do advogado João Pacheco, por força de honorários da justiça.

 

Tinha que defender o que era seu! Tinha que defender! Não era vaidade não, nem abuso de poder! Queria era justiça. Coronel era apenas chamado por respeito; no fundo se considerava apenas um senhor de terras de carreira tirada. Media a opinião sobre seus pensares, enquanto a manhã, envolta de cerração, estranhamente em pleno julho, calou o pensar para prendê-lo ao que de longe no morro se avistava. A mulherada, de cabaça suspensa em roldanas de pano, na cabeça, ia colher água, ia ao poço no fundo do quintal da casa grande. Iam ainda meninos tangendo aqui e ali os bodes no caminho, sem tagarelices na tristeza da neblina.

 

Coronel vivia vangloriando-se do lugar em que edificara a casa grande, diante de frondosa sapucaia, na sombra onde brincava em menino. Do morro, enxergava-se tudo – "até a cor dos planetas e a espada de são Jorge!", como, brincando, repetia. O morro trazia segurança e elevação de espírito, e uma paisagem que Deus duvida. Deus duvida!

 

- Genésio, vamos tirar umas embiras, que termino esse chapéu hoje. Com ele, venço esse verão com cara de seca. Não me engano com neblina. O ano é de seca.

 

E se calou a manhã, e desapareceu-se a neblina, e rarearam-se as nuvens, para correr sobre o morro a estrada nos raios retos do sol.