Dílson Lages Monteiro
- Mais uma vez, vão virar as costas pra Deus. Nessa cidade, não se teme nem os castigos de Nossa Senhora. Valha-me, Deus! Esse povo não sabe o que faz – disse Deusimar ao bisneto, enquanto prendia uma presilha ao cabelo, após o terço sagrado de todas as manhãs.
- Vão mesmo derrubar a igreja, vovó? – perguntou Marciano, metendo as mãos no bolso, torcendo para a avó dizer que não.
- Vão sim, e daqui a pouco. Nada se pode fazer contra esse absurdo.
- Mas por quê? Por que vão destruir?
- Por maldade, meu filho. Por maldade e ignorância! Como fizeram ao cemitério.
- Qual cemitério, vó?
- Ora, você sabe, porque já viu algumas dezenas de cruzes na Leônidas Melo e o que sobra de alguns túmulos. Aquelas cruzes sem nome, esquecidas, ali perto daqueles pés de guabiraba depois dos correios, ali foi o cemitério da cidade por mais de cem anos e destruíram por maldade, por pura maldade. Não duvido é nada se um dia ali tiver casa. Gente morando em cima dos mortos...
- E quem tava enterrado lá, a senhora conhecia?
- Conheci alguns. Desde quando me entendo por gente, ali já era cemitério.
- Conhecia quem?
- Muita gente, muita gente.
- Quem? Quem?
- Gosto de gente curiosa, mas curiosidade muita atrapalha...
- Ah, vô, quem?
- Nossa gente, nossa gente.
- Nossa gente, quem?
- Deixe de perguntas e abotoe essa blusa, que nós vamos à igreja. Quero fazer minhas últimas orações ali, antes que ela esteja no chão – encerrou a conversa, fechando a porta de acesso ao quintal, de onde o perfume dos jasmins abafava o tempo.
Deusimar vivia de orações, absorvida pelo sonho da vida eterna. Divinamente gorda, sentava-se numa rede, por longas horas, fazendo rosas e rezando. Sua fé era de Barras conhecida. Sua fé, do tamanho do mar. Mulher mais católica que ela estava por surgir. Como rezava. Havia poucos dias, foi até o Maribondo, cantando em romaria para chover, que o ano prometia seca. Com reza dela – dizia-se do quadro do mercado às preces nas missas – não se podia. A igreja era quase a morada de Deusimar. Ali se demorava todas as manhãs; todos os fins de tarde, quando os sinos repicavam a passagem das horas.
Estava pronta para se despedir do templo que os antepassados construíram. Antes de pisar na rua, procurou o quadro na parede e repetiu a mensagem que o adornava: O senhor é meu auxílio. Não temerei! Repetiu a mensagem em voz alta três vezes e mandou que Marciano a lesse e rezasse a salve rainha. O rapaz leu, rezou, mas sem se concentrar: não se desligava dos pesadelos da noite insone em que anteviu o centro sem a igreja. Sentiu as badaladas do sino ressoarem na audição os sons mais tristes já ouvidos.
Naquele dia, o sino da Matriz tocara às seis da manhã, como de hábito. Tocara pela derradeira vez daquele ponto. Marciano despertou com o tilintar preguiçoso na torre da igreja, um tilintar arrastado, rouco, que doía aos ouvidos; um tilintar igual ao próprio sono. Como ele não dormira direito – a noite inteira enfrentou pesadelos, vendo a igreja suspensa nas nuvens – sentia-se sonolento, no ritmo do sino, que parecia não mais querer tocar.
A igreja ficava a poucos passos da casa de Deusimar. Com rigidez e ternura, ela caminhava trôpega, pendendo o peso do corpo em todas as direções, e segurava firme no braço do rapaz; o rapaz cujas visitas enchiam-na de sorrisos e abrandavam o coração amargurado e solitário. Marciano estava rapazinho e, em casa, teimava em deixar de ser coroinha, contrariando a vontade da bisavó, sem que sequer a beata imaginasse.
Ela se orgulhava quando ele saia da sacristia vestido na bata vinho, coberta por manto branco. O ritual era sempre o mesmo: ajoelhava-se em cumprimento ao santíssimo e sentava-se ao lado do reverendo na companhia de dois pares de assemelhados. Deusimar andava contrariada com as autoridades, principalmente com o padre Barata, mas queria ver Marciano ainda coroinha.
Ele nem sentiu o tempo passar. 13 anos. Era rapaz Até outro dia, não passava de um molecote montado em cavalinhos de carnaúba na Aurora, sonhando em ser coronel de terras e bichos. Agora nem queria saber de mato. Vivia mesmo de olho era nas graças das mocinhas que passavam. Vivia de olhos. E como tinha menina bonita em Barras. Marciano começava a sentir vergonha de ser coroinha, mas que a bisavó nem sonhasse. Por que decepcioná-la? Uma hora, ela concluiria que não era mais menino. Era rapaz. Rapaz.