O morro da casa grande

22. O desarranjo da fazenda

 

Dílson Lages Monteiro

 - Menino, o apressado come cru. Não toma mais benção ao bisavô? – perguntou o velho Alberto Pires a Marciano; o sorriso, em um dos lados da boca, no outro, a flacidez das rugas sóbrias. – Da próxima vez que vier aqui nem sabe se vivo ainda estou!- finalizou aos risos.

 
Os olhos pequeninos se remexeram na cavidade do rosto, escondidos ao fundo da face; escondidos, mas vivos às minúcias em derredor. Iluminou-se na reminiscência do cortejo de Zefa Catitu, parado abaixo do morro, até que coronel Custódio rumasse ao corpo em sinal de despedida. Tonho Preto, à frente, segurava uma das extremidades da esteira, onde carregavam a mulher para o cemitério do açude. Genésio, na outra, sustentava o peso com maior força. O coronel, estático, fazia o sinal da cruz; o sinal para que levassem o corpo da defunta. Imaginou o bisavô em uma esteira como Zefa Catitu e tratou logo de pensar noutra coisa.
 
A criança abraçou forte o bisavozinho e vigorou a intuição de Alberto eternamente ausente. Abraçou-lhe forte. Os olhos em água pura envoltos. O caminhão, ligado, à espera dos passageiros da boleia. Faltava despedir-se dos avôs e falar com o povo todo das calçadas, o povo se despedindo e curiando o ruído do carro.Feito isso, podia entrar na cabine. Podia entrar.
 
Lembrou-se de Tubarão e do cofo com a franga pedrês. O cassaco, vendo a agonia do menino, andando de um lado a outro, à procura da pedrês, gritou que o cofo estava sobre a carga de babaçu, amarradinho nas grades da cabine. Procurou o cão na porta da casa. Depois de abraçar todos, tinha que se despedir dele, o colega com quem se embrenhava nas veredas, em companhia de Jarbas ou até mesmo só, com coragem de enfrentar até onça. O cão, habituado às noites de caçadas, matou, certa vez, até uma cobra esticada no caminho, pronta para o bote. Partiu pra cima e matou. E era venenosa. Genésio disse.
 
Tubarão, sentado na porta da marquise, não esboçava movimento. Quando topou com o brilho dos olhos de Marciano, balançou o rabo. Antevia a ausência do menino que corria pelo morro, atirando ao longe pedaços de madeira; logo entre os dentes do animal, condicionado a buscar o que o menino arremessasse. Até pedra o bicho trazia entre os caninos. Trazia e soltava sobre os pés do pequeno.
 
Antes de entrar no caminhão, faltava ainda uma coisa. Tinha de perguntar ao bisavô. Tinha. Fizera a Genésio a pergunta – ele, que tudo esclarecia, mudo, mudo, não quis explicar. Perguntaria mesmo a quem tinha de responder, nem que pegasse um pito. Não doiria. O bisavô nunca lhe dera palmada. Só pito. Por que não perguntar?
 
Marciano não se conteve. Quase gaguejando, atirou as palavras contra a calçada, onde coronel Alberto remoia a partida:
 
- Vô, o que é um coronel?
 
O bisavô franziu as sobrancelhas. Ser coronel não significava mais tanto. Ser coronel tinha seus dissabores; mas devolveu às palavras no rumo do caminhão:
 
- É o que você será um dia! Gente grande! – riu. - Dê lembranças a sua mamãe.
 
Marciano não entendeu, mas fingiu que sim. A hora de partir se consumava. Foi o primeiro a entrar na cabine do automóvel, seguido do irmão, atendendo às ordens do avô, que também viajaria. Ia deixar os netos na cidade. A mulher prenhe, quase nos dias de parir, a mulher, que há horas esperava o automóvel, subiu com sacrifícios, com a ajuda de Genésio e Dona Alzira. Era gente da fazenda. Doutor José, de quem era afilhada, faria o parto. Ela preferia parir na cidade; padecia de complicações desde quando emprenhou. Genésio tratava de passar a perna sobre a carroceria e escalar os sacos de babaçu. Barras também era seu destino. Na companhia do coronel Custódio, talvez ainda hoje tomasse uns tragos de cana no ambiente da Maria Joana.
 
O caminhão tremia ligado. Marciano de olho do câmbio. Temia que a mão deslizasse, atingisse a peça e o caminhão virasse. Comprimia-se no banco, apertando as costas no couro suado e fedorento do encosto mal-cuidado. Apertava-se, receoso de as mãos ou as pernas alcançarem a marcha. Na ladeira, fecharia os olhos. Lá, era que tinha mais medo de provocar o acidente. Já nem sabia mais se ainda queria possuir uma máquina perigosa daquelas.
 
A Aurora se desarranjava nas curvas em movimento, a proporção que a mata de babaçus e unhas de gato caminhava para trás; as férias terminavam, para se repetirem quando dezembro chegasse. Tubarão, Jarbas, Genésio, a casa de farinhada, o cajueiro no campinho de futebol e as grotas de água estariam no mesmo lugar, vistos do morro, onde uma cadeira media os passos dos bois e o céu estrelado.