(Miguel Carqueija)

 

Falamos hoje do Leonardo Da Vinci do século XIX:

 

O MISTÉRIO DE EDGAR ALLAN POE




       “Assim, na minha infância, na alba
 da tormentosa vida, ergueu-se,
     no bem, no mal, de cada abismo,
   A encadear-me, o meu mistério.”

(Edgar Allan Poe, “Só”)



    Para quem viveu tão curta vida — faleceu em 7 de outubro de 1849, aos quarenta anos — Edgar Allan Poe deixou uma obra extensa, eclética, impressionante, e eu direi mesmo: sem precedentes. Sacudiu a literatura, que nunca mais foi igual depois dele. Podemos encontrar a influência de Poe em importantes escritores pósteros, como Júlio Verne, Conan Doyle, Robert Louis Stevenson, H. P. Lovecraft, Clifford D. Simak, Ray Bradbury, Jorge Luis Borges, John Dickson Carr, Ellery Queen e muitos outros, inclusive brasileiros como Álvares de Azevedo e Machado de Assis.
    Já foi dito que ele é o “pai de todos”. Sua obra abrange um grande leque de gêneros: o conto de terror e sobrenatural, de crime e perversidade, o policial detetivesco, a ficção científica, a narrativa de viagens e aventuras, o poema mórbido e, até, cósmico, o conto fantástico de humor e mesmo o ensaio cosmológico, seu livro “Heureka”. A nós, por ora, interessa especialmente a sua contribuição para o conto e a novela.
    A vida de Poe foi trágica e atormentada. Pobreza, graves problemas de família, a fraqueza pelo álcool, tudo isso dificultou terrivelmente a vida e a obra do gênio. Não podemos, de fato, imaginar até onde ele teria ido, vivesse e escrevesse até os oitenta anos. Hervey Allen, um de seus biógrafos, comenta sobre a inglória luta de Poe contra os fados que o perseguiram por toda a vida:
    “Advertido pelo que fôra uma quase aproximação da morte em Filadélfia, Poe lutou com todas as forças que lhe restavam para abster-se da bebida, e durante algum tempo conseguiu-o.” (“Notícia bibliográfica”, no volume “Poesia e Prosa” — Livraria do Globo, Porto Alegre, 1960).
    É uma felicidade que uma vida tão curta e atormentada possa haver produzido obras tão primorosas. Nos contos de Poe, variando embora os assuntos, notamos à primeira vista alguns caracteres recorrentes: a narrativa em primeira pessoa (salvo algumas exceções), o detalhismo sem concessões ao supérfluo, e a capacidade em prender a atenção logo às primeiras palavras.  Sobre este ponto podemos mencionar alguns exemplos:

    “Vós que me ledes, por certo estás ainda entre os vivos; mas eu que escrevo, terei partido há muito para a região das sombras.” (“Sombra”)

        “Durante todo um pesado, sombrio e silente dia outonal, em que as nuvens pairavam opressivamente baixas no céu, eu estive passeando sozinho, a cavalo, através de uma região do interior, singularmente tristonha, e afinal me encontrei, ao caírem as sombras da tarde, perto da melancólica Casa de Usher.”  (“A queda da Casa de Usher”)

    “Permiti que, por enquanto, me chame William Wilson. A página virgem, que agora se estende diante de mim, não precisa ser manchada com meu nome verdadeiro.” (“William Wilson”)

    O conhecido Charles Baudelaire, em seu estudo “Edgar Allan Poe” (reproduzido no citado volume “Poesia e Prosa”), descreve um pouco dos métodos do escritor: “Sua solenidade surpreende e mantém o espírito alerta. Sente-se, desde o princípio, que se trata de algo grave. E lentamente, pouco a pouco, se desenrola uma história, cujo interesse inteiro repousa sobre um imperceptível desvio do intelecto, sobre uma hipótese audaciosa, sobre uma dosagem imprudente da Natureza no amálgama das faculdades. O leitor, tomado de vertigem, é constrangido a seguir o autor em suas arrebatadoras deduções.”
    Um tal literato deveria necessariamente interessar ao cinema; todavia o caráter intimista de seus escritos não os torna facilmente filmáveis, daí que, considerando a idade da sétima arte, relativamente poucas adaptações foram feitas. Notabilizaram-se as do produtor e diretor Roger Corman, que homenageou Poe lançando várias obras-primas, como “O corvo” (1963), reunindo diversos astros do filme de terror, a saber Boris Karloff, Peter Lorre, Vincent Price e Jack Nicholson.
    Voltando aos contos, Poe moveu-se à vontade em diversos gêneros. Produziu até humorismo, como se vê em “O sistema do Dr. Breu e do Professor Pena, que fala de um hospício onde os diretores são loucos, deliciosa peça de humor que pode mesmo, quem sabe, ter motivado Machado de Assis a redigir sua satírica novela “O alienista”.
    No conto de perversidade e crime penetrou a fundo no íntimo do criminoso, que cava o seu próprio abismo como se vê em “William Wilson”, terrificante drama em torno do conceito do duplo, o “outro eu” — a tragédia de um homem que luta contra a sua própria consciência.
    Na ficção científica Poe foi um surpreendente precursor. Previu a viagem à Lua em “A aventura sem par de um certo Hans Pfaall”, onde, por maior requinte, aparece até um OVNI! Previu a descoberta do Pólo Sul em “Manuscrito encontrado numa garrafa” e a travessia aérea do Atlântico em “A balela do balão”.
    Poe é geralmente considerado o criador do conto e do romance policial, tendo apresentado o primeiro detetive de ficção, o cavalheiresco francês C. August Dupin, que aparece em três notáveis narrativas, “Os crimes da Rua Morgue”, “O mistério de Maria Roget” e “A carta furtada”. O detetive que resolve enigmas por dedução e análise, muitas vezes biografado por um admirador (como Watson em relação a Holmes) tem em Dupin seu primeiro exemplo, primeiro de uma imensa galeria onde foram surgindo Hercule Poirot, de Agatha Christie; Solar Pons, de Augusth Derleth; Nero Wolfe, de Rex Stout; e tantos mais.      
    Curiosamente, em Poe a mulher é vista com uma espécie de veneração onde a morte funciona como um meio de preservação. Daí a incessante, obsessiva lembrança de Ligéia e de Lenora.
    Com toda a sua melancolia Poe cultivava o belo, a harmonia, a natureza. Escreveu contos onde o único assunto era a descrição de paisagens: “O domínio de Arnheim ou o jardim-paisagem” e “A casa de campo de Landor”. Era objetivo em relação à Ciência e todo o seu espírito exibe, como revela a análise de sua obra, uma sensibilidade extrema, a um grau que poucos seres humanos poderiam alcançar.
    Nutrindo de longa data o interesse por este autor, ao escrever o romance “Farei meu destino” veio-me a idéia de visualizar o que seria Poe no além-túmulo, como já o havia feito Bradbury. A posição de Poe como mestre espiritual surgiu com grande espontaneidade, pois eu reconhecera, no beletrista, o que ele próprio chama “o meu mistério”. Daí as palavras que eu coloco nos lábios da personagem Iolanda:

    “Mas o senhor é um homem admirável. É aquele que conhece os segredos da vida e da morte, e já os conhecia quando era vivo. Somente o senhor conhecia.”   

    E isso incluía o mundo onírico, pois a poesia “Um sonho num sonho” parece conter o germe de inspiração para “As ruínas circulares”, do grande Jorge Luis Borges.
    A iniciativa da Editora All Print, homenageando Edgar Allan Poe numa antologia que comemora os 200 anos de seu nascimento (ocorrido em Boston, EUA, em 19 de janeiro de 1809) é especialmente admirável, por incentivar autores brasileiros a produzirem contos baseados na obra do Mestre. O que, de per si, representa um estímulo ao bem-escrever, à produção de textos profundos e significativos. E, enfim, estímulo à leitura da literatura de alta classe, como com certeza é a obra de Edgar Allan Poe.


Rio de Janeiro, 16 de novembro de 2009  


NOTA DO AUTOR: este texto serviu de prefácio à antologia “Poe 200 anos” (contos de autores brasileiros inspirados em Edgar Allan Poe), organizada por Maurício Montenegro e Ademir Pascale e editado em 2010 pela All Print Editora (São Paulo-SP).