ROGEL SAMUEL


Foi assim que este soneto de natal de Machado de Assis passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade nacional, escrita pelo mais mordaz dos críticos, que fica a rir da nossa ignorância e besteira:

Um homem, — era aquela noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno, —
Ao relembrar os dias de pequeno,
E a viva dança, e a lépida cantiga,

Quis transportar ao verso doce e ameno
As sensações da sua idade antiga,
Naquela mesma velha noite amiga,
Noite cristã, berço do Nazareno.

Escolheu o soneto . . . A folha branca
Pede-lhe a inspiração; mas, frouxa e manca,
A pena não acode ao gesto seu.

E, em vão lutando contra o metro adverso,
Só lhe saiu este pequeno verso:
"Mudaria o Natal ou mudei eu?"



O que acontece é que o famoso “Soneto de natal”, de Machado de Assis, exibe a marca de algumas de suas mais famosas e misteriosas ironias: - Machado nunca está dizendo o que aparentemente diz - sempre possue algo escondido, ou melhor, aquilo que está ali precisamos verter para a sua outra verdade, que é a do (entre-)texto, procurando lá a real significação do que ele quer, no texto, apontar, - o sub-texto dos sentidos ocultos, possíveis, falíveis, omissos, mas cabíveis, ao leitor desconfiado de que Machado está traindo, escondendo o jogo, de que está ausente-presente ali, por trás dos óculos, a rir, a gargalhar, ironicamente, da nossa burrice nacional, da nossa incapacidade de ler aquele soneto “corretamente”, e da sua própria incapacidade de escrevê-lo, nesse Bin Laden dos poemas de natal.

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O tal soneto começa com um indefinido: “um homem”... Um homem não é um poeta. Quem é senão a própria figura oculta de Machado? Se um certo homem resolve escrever um certo poema de natal, ou escrever um poema no dia de natal, lembrando-se da infância, e “a viva dança, e a lépida cantiga”, esse deve ser uma fotografia poética do autor - caso contrário o soneto não teria nenhum sentido estruturante.

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Ora, um homem, quer dizer, um poeta, o poeta Machado - depois de lembrar-se da infância, ou por causa disso, resolve escrever um poema de natal no dia de natal, e não consegue, e nada sai, nem um verso, apenas a reflexão de que nada conseguiu, de que é incapaz de compor o mínimo poema de natal - seja porque sua lira se encontra em baixa, seja porque era mesmo Machado de Assis quem estava ali, e ele era verdadeiramente ateu, não acreditava em natais, nem naquela estória piedosa de “noite cristã etc” que só pode ser pura ironia do velho materialista - não se fie o leitor nessa estória comovente de “verso doce e ameno”, isso é pura galhofa do velho Machado - o que ali se tem é mesmo o “metro adverso”, a velhice, portas da morte, do nada, da folha em branco da morte, - a morte da inspiração, da juventude, do frescor musical de seus versos, da inspirada sensualidade juvenil - aquilo tudo que não mais existe, e em seu lugar a secura da voz, sem musicalidade nem poesia, apenas reflexão árida, cerebral, seca, vazia, amorfa, vinda do mofo interno, da mediocridade de almanaque: "Mudaria o Natal ou mudei eu?"

 

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Mas o pior - e o mais grave, ou mais engraçado - é que a maioria dos leitores brasileiros, e os escolares, pelo tempo agora, mais de século, tem lido o soneto às avessas, ao contrario, vendo nele uma singular beleza que ali não há, que não está lá, que ele não tem, de que não dispõe, nem quis ter - pois o soneto é uma decepção, e é a expressão desta, a voz da mediocridade - pois o soneto é a escrita da incapacidade e da ausência, da insuficiência, e da não-poesia, do não-poético, pois Machado intencionalmente ironiza a incapacidade de escrever um belo soneto de natal por falta de fé, mas escrevendo um péssimo soneto sobre a sua própria falência de fazê-lo, e aquilo vem cheio de uma aparente “beleza” perfumada e barata, piegas e popular, que se traduz naquela “noite amiga”, naquela “noite cristã”, naquele “berço do Nazareno”, quando “sabemos” ou desconfiamos de que Machado não está falando sério, de que ele presumia que o leitor vulgar já ia achar o soneto maravilhoso, antológico, e realmente foi assim que o desgraçado soneto se tornou um clássico da literatura nacional, e foi assim mesmo que passou a figurar em todas as nossas nobres antologias históricas, desgraçadamente mal compreendido, mal lido, mal interpretado, sem que ninguém visse o que nele se esconde: a mediocridade, a critica da mediocridade escrita pelo mais mordaz crítico da mediocridade que foi Machado de Assis, que está a rir da nossa ignorância nacional brasileira...

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E foi assim que este soneto se tornou um clássico.