O mensalão, o marxismo e a cadeia
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 20/11/2013, às 13H33
[Paulo Ghiraldelli Jr.]
O que foi o “mensalão”?
Para alguns que participaram, foi uma forma de enriquecer. Para outros, também participantes, foi algo que não rendeu um centavo a mais, apenas desgraça, mas era uma missão política e assim foi executado. Tratava-se de dar um golpe na democracia liberal, ou seja, tornar o Congresso para sempre dócil ao governo. É exatamente essa dubiedade, essa avaliação de que foi um crime para a democracia e uma missão política para os revolucionários de dentro do PT, que acabou gerando uma grande confusão na cabeça de muita gente. E Lula refletiu e alimentou essa dubiedade
Afinal, o que ocorreu? Escrevo aqui a partir do que garimpei desde 2005 e, é claro, no caso de algumas conclusões, sem citar a fonte. Não cabe aqui (e talvez em lugar algum) revelar informantes que me ajudaram a compreender o que pude compreender do episódio, uma vez que pediram sigilo de seus nomes.
Em um primeiro momento, quando ficou sabendo de que havia pagamento regular para deputados votarem com o governo, Lula mostrou-se surpreso. Em certo sentido, ele foi pego realmente de surpresa. Ele sabia dos passos de Zé Dirceu, mas não sabia do “mensalão” ou, ao menos, do “mensalão” em si, nos moldes feitos por Valério com Dirceu etc.
Tanto é verdade que Lula falou claramente, em uma entrevista antes do caso, que ele não entendia como que o Zé Dirceu conseguiu os acordos no Congresso de modo tão fácil. Ele falou isso sabendo que Zé fazia negociatas. Mas não o “mensalão”. Não aquele esquema. Caso soubesse, ele não teria dado essa “deixa” tão clara para quem quisesse investigar. Então, quando Roberto Jefferson o procurou, de fato ele não sabia do caso e ficou preocupado. Muito preocupado mesmo. Assim, quando tudo estourou, Lula não viu outra saída senão admitir os erros – mais uma prova de que não sabia o tamanho da coisa. O PT seguiu Lula, tanto é que trocou seu diretório, deixou os dissidentes saírem, abaixou a cabeça. Mas o fato é que a oposição sabia mais que o próprio Lula. E a sorte deste, como sempre, não o abandonou. A oposição sabia que o “mensalão” tinha origem dentro do PSDB. Fernando Henrique saiu gritando dentro do PSDB: “Lula não é Collor, nada de Impeachment”. O tempo foi passando e o governo Lula acertou a mão, senão em tudo, ao menos no projeto de diminuição da miséria. E isso, no Brasil, só é pouco para a direita. Para todos nós, a população, veio em boa hora.
Dessa maneira Lula terminou o segundo mandato em glória, e fez o sucessor. Foi então que ele, encantado com a sua biografia, que começava a ser posta no exterior como um emblema de êxito de um estadista, lançou a ideia de que iria provar que o “mensalão” não havia existido. O “mensalão” era então a única marca negra de grande porte na biografia de Lula que a imprensa internacional passava e repassava.
Há quem diga que Lula foi chantageado por Zé Dirceu e por isso mudou de opinião. Mas Lula não mudou exatamente por isso. Como qualquer um de nós, Lula não é alguém imune a chantagens, mas não tanto quanto se pode imaginar. Ele não deixa tanto rabo de palha como alguns gostariam e como alguns publicam na Internet, reproduzindo notícias falsas. Naquele momento, ele mudou porque se encantou consigo mesmo no final do governo e desejou limpar aquela mancha da sua biografia, que então o estava incomodando.
Com Lula mudando de opinião sobre o “mensalão”, o PT mudou rapidamente. Começou então a conversa de mobilizar a máquina do jornalismo marrom no sentido de hostilizar o Ministro Joaquim Barbosa, e criar uma versão de que o “mensalão” era uma mentira. Os petistas que ficaram no partido (e de certo modo até uns que saíram), no fundo do coração, queriam isso. Quando viram que Lula mudou, ficaram felizes. O desejo de reescrever a história é um vício velho na esquerda.
Chegamos então ao nosso momento, o atual.
Zé Dirceu e outros do time dele são tidos como construtores do PT. Zé Dirceu tem muitas amizades nos diretórios do PT no Brasil todo. É um “animal político”, um petista ferrenho tanto quanto Lula. Alguém que janta e almoça PT, perdendo nisso apenas para os obcecados pelo PT do lado contrário, como Reinaldo de Azevedo ou Demétrio Magnoli. Mostra-se como exemplo de conduta obstinada, a ponto de fazer o petista pensar de um modo favorável ao que seria a dubiedade do “mensalão”. Ou seja: trata-se de negar que o mensalão é outra coisa que não apenas um fato político, algo envolvido em um julgamento político. Trata-se de tomar o “mensalão” como um episódio a mais na “luta de classes” e, portanto, se é algo que a acabou por conduzir Zé Dirceu e Genoíno à prisão, deve ser visto como uma derrota político-estratégica, não um pecado em si. Zé Dirceu, portanto, vai pagar por isso nas “prisões burguesas” – é assim que o militante pode vê-lo agora.
Por isso Genoíno aparece em fotos, saindo de casa rumo à prisão, vestindo uma capa. Claro, tudo meio patético (a capa-pijama). Mas qual comportamento adotar? Eles precisam ir para a cadeia gritando “inocência”, mas eles sabem que o militante petista vai traduzir a palavra “inocência” por outra, que eles não podem dizer em voz alta. O militante está escutando exatamente o que eles querem dizer para ele, e só para ele, militante: “fizemos o ‘mensalão’ sem pegar dinheiro para nós mesmos, tudo era para o partido, para vencermos a burguesia”. “Inocência” é para ser ouvida dessa forma! Então, tudo está mais que justificado. Visto segundo essa ótica, o “mensalão” se apresenta não como crime, mas dever de casa, dever de revolucionário. Coisa antes de herói que de vilão.
Para compreendermos como que o petista militante consegue essa mágica de ouvir uma coisa e compreender outra, aquela que realmente se quer comunicar a ele, é necessário saber um pouquinho de filosofia política. Explico aqui o que é possível.
No marxismo (não necessariamente em Marx) a noção de classe social não é uma noção puramente empírica. Classe social é um grupo social tomado historicamente a partir de uma referência ao mundo do trabalho: detentores de meios de produção e não detentores de meios de produção. Mas não só. Classe social, assim vista, é mesmo classe social se há ligado a ela, por uma operação intelectual da teoria, algo chamado “consciência de classe”. “Consciência de classe” também não é algo empírico. Trata-se da consciência que se pode atribuir a um grupo (“proletariado” ou “burguesia”, que são classes “fundamentais” no “mundo do trabalho”), e que expressa o que seria o interesse desse grupo visto do ponto de vista de uma filosofia da história. Assim, se tomamos a filosofia da história criada pelo marxismo, o motor de tudo é a “luta de classes” e o ponto de chegada é a vitória da classe trabalhadora sobre todas as outras, e sendo ela a “última classe” (nada há depois dela), ela eliminaria as diferenças de classe e, assim, o homem “se reencontraria consigo mesmo” como o homem genérico, não mais o homem circunscrito a classes. Teríamos então o “fim da história” e veríamos a nossa entrada em um mundo sem ideologias, de modo que o homem veria todas as coisas como elas são, além de poder viver sem depender inexoravelmente da exploração do trabalho alheio etc. Desse modo, a classe trabalhadora é um grupo social que tem uma determinada “consciência de classe” que expressa o seguinte: “é necessário fazer tudo que se tem de fazer para que os interesses dos trabalhadores se realizem, e esses interesses não são os de melhoria de vida no capitalismo, mas os de colocar fim na história colocando fim ao próprio capitalismo, à divisão de classes e à ideologia que nubla a visão humana.”
Pois bem, tudo isso se dá em um plano teórico, assim, para que isso seja realizado na prática, os homens empíricos precisam encarnar essas diretrizes. Então, alguns homens empíricos precisam ter em suas consciências individuais o máximo de informações, crenças e desejos que estão postos na “consciência de classe”. Quem são esses homens? Eles devem sair do interior do proletariado ou do interior de camadas intelectuais ligadas ao proletariado ou classe trabalhadora. Esses homens farão o papel de grupo de vanguarda dentro de um “partido de vanguarda”, que irá conduzir as transformações no sentido apontado pela filosofia da história (e que o marxismo chama de história ou até mesmo de “História”).
Na prática do PT, Lula seria o chefe do PT e, portanto, aquele operário que teria sua consciência individual muito mais próxima da “consciência de classe” máxima. Isso durante um tempo. No entanto, Lula teria se transformado em um político. Por questões de conjuntura histórica, teria se tornado um elemento de transição. Quem seria o chefe verdadeiro da revolução? Ora, um daqueles que, antes de Lula, já estavam na atividade de combate político contra a “democracia burguesa” (ou “uma expressão dessa democracia burguesa”, por exemplo, a “ditadura militar”). Zé Dirceu se viu, cada vez mais, como o sucessor autêntico de Lula, mas com os adendos necessários: ele seria a expressão do indivíduo de vanguarda capaz de incorporar a “consciência de classe” em seu desenvolvimento máximo. Assim, o que viesse de suas ações, não precisaria ser posto publicamente para ser avaliado pela militância do PT. Suas ações sempre estariam corretas. Lula teria de prestar contas de atos, mas não Zé Dirceu. Ele poderia se comunicar com o partido de modo telepático. Foi efetivamente o que fez e é o que continua fazendo exatamente nesse momento.
Zé Dirceu fez o mensalão porque ele continuou sempre com a ideia de que o “parlamento burguês” não podia ser livre. Uma vez livre, o parlamento obedeceria só Lula, pois Lula tinha força de voto. Mas Zé não queria isso, pois isso é o que é feito dentro da “política liberal democrática”, a “política burguesa”. Para o seu projeto, o ideal é o parlamento em obediência ao partido, ou seja, a ele próprio. Até pouco tempo, ele pensava assim: “quando me tornar o presidente, sucessor de Lula, governarei já com o parlamento amarrado ao meu projeto, independente do quanto tenha ou não de voto”.
Zé Dirceu começou a montar esse tipo de teoria da revolução na cabeça e começou a colocar isso em prática. Ora, ele se mantém nesse projeto. Pode ser que ele tenha, agora, deixado de lado a ideia de que pode ser presidente. Mas ele nada mudou de resto. Tudo que ele pensa está dentro dessa teoria que acabei de expor.
Assim, lá na prisão e de lá da prisão ele pode comandar o PT, e talvez mais que Lula ou Dilma. Tanto é verdade que Lula e Dilma, mesmo não acreditando nessa adaptação de teoria marxista, não a desmentem, não dão um chega para lá em Dirceu. Temem Dirceu porque temem que, se falarem algo diferente disso tudo, não contarão mais com a base de militância do PT. A base e a militância do PT hoje não é como ontem, espontânea. Ela é paga. Mas isso não quer dizer que nessa militância paga não exista ainda muita gente que é “quadro” do PT. Essa gente se politizou segundo essa cartilha que expus acima. Todas essas pessoas acham legítima essa telepatia de Dirceu com o partido. A quatro paredes, elas se orgulham de conversar telepaticamente com o líder. Elas, inclusive, se acham superiores por conta de conhecerem os segredos dos deuses, “os segredos de Dirceu” que são os “segredos do marxismo” nessa sua capacidade de dar o poder da conversa por sinais e códigos que “os burgueses” não podem captar.
Contanto que Lula continue quieto ou, quando falar, não diga outra coisa que não o que já disse, que o julgamento do “mensalão” foi simplesmente um ato político contra o PT, tudo estará bem entre ele, Dirceu e Dilma. E Lula não vai fazer diferente. Além disso, na vai mudar porque o PT não tem mais quadros que não pensam assim, dentro desse marxismo rasteiro, místico e que funciona segundo a baixa escolaridade. Nem existe mais no PT alguém que tenha uma visão mais sofisticada do marxismo para pensar diferente disso. Todos os intelectuais marxistas ou próximos do marxismo, revolucionários ou social-democratas, já morreram ou se afastaram do PT. O PT é isso aí que está sendo comandado por Zé lá da cadeia. E, para que ninguém esqueça: o PT é o único partido organizado no Brasil.
Daqui para diante, quanto mais os elementos da imprensa de direita baterem em Zé Dirceu, mais ele crescerá dentro do PT. Até Genoíno, doente e já sem bases políticas, voltará a ter força. A direita é pouco inteligente nesse tipo de ação por conta de seu ódio visceral diante de um detalhe que todos nós já vimos: Zé Dirceu não tem problemas com falta de serotonina. Ou se tem, nunca se ficou sabendo de público. Publicamente ele sempre se mostra inquebrantável, agindo segundo uma determinação jesuítica. Dentro de partidos de esquerda do tipo do PT isso conta tanto quanto a figura mítica de Che Guevara que ficou nas camises do mundo todo.
Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo.