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Por Rosidelma Fraga*
 
O menino quase perdido (2009),trigésima obra de Francisco Miguel de Moura, divide-se em trinta e cinco narrativas que podem ser lidas separadamente como é o caso de Vidas secas, de Graciliano Ramos, cujos contos foram escritos fora de ordem para depois juntar o embrião com o corpo maior que é o romance. O narrador de Miguel de Moura, em terceira pessoa, vale-se de estratégias de concatenação de memórias de um sujeito que se vê como duplo na busca interior e na procura do outro. A esse respeito asseverou sua leitora assídua Teresinha de Queiroz (2009, p. 11): “retomar o tempo é igualmente buscar as memórias e as lembranças dos outros, no desejo e no desespero de dar significado e carnação aos sonhos fugidios que ameaçam sempre nos escapar nessa busca que é a procura de si”. A sensação que o leitor tem é a de que a narrativa onisciente pareça ter sido realizada em primeira pessoa, causando uma quebra de conceitos da própria narratologia nas mãos de um narrador idôneo que conhece bem o caminho para construir o inverso sem usar necessariamente a primeira pessoa. Trata-se de uma história introspectiva, não obstante escrita na terceira pessoa do singular. E essa marca é uma das possibilidades para que O menino quase perdido seja ímpar, pois há uma busca de si no outro e vice-versa.
O menino da narrativa de Moura parece mergulhar nesta busca de si e não se perde nas analepses, no sentido genettiano do termo, uma vez que há um projeto de texto baseado nas elucidações de Paul Ricouer (2007) no que tange à ars memoriae (memorial ou arte da memória). A narrativa de O menino quase perdido está centrada no método seletivo como bem degustamos em Ricouer, ao defender que toda narrativa é seletiva e não existe memória sem história e esquecimento.
As primeiras páginas da obra passa pelo crivo existencialista do ponto de vista da história construída por um sujeito humano. O leitor pode encontrar, em muitas partes das “crônicas”, alguns subsídios que permitem categorizar a escritura como uma autobiografia que não quer perder a feição memorialística da infância. Uma delas é a narrativa de “As marcas da areia” que oscila entre a memória, a história e o esquecimento:
 
 
 
“Quem não tem história, não tem vida feliz, plena, no sentido humano. A história completa o espírito de cada homem, esse animal social, político e, dizem, religioso. O menino quase perdido, como não tem história, continua a fazer pegadas na areia...” (MOURA, 2009, p.25).
 
 
A partir deste instante, o leitor começa a indagar: Quem é o menino quase perdido na fala do narrador? As duas possibilidades de leituras são textuais e intratextuais. A história construída pelo autor e não pelo narrador permite discordar do próprio narrador. O menino sem história revive, em seu memorial, as pegadas de areia não unicamente daquele instante sui generis da infância, como também da própria história do autor. Essa leitura pode ser feita se o leitor associar o paratexto “As marcas da areia” com o título de Areias (1966), o primeiro livro de poesias, de Francisco Miguel de Moura. Perseguimos tal leitura, defendendo que o menino quase perdido (personagem) se assemelha igualmente ao autor empírico. A escritura da obra existe para comprovação. E como as narrativas não são interdependentes, elegemos algumas partes para que a leitura seja tão real quanto à “narrativa autobiográfica”. Quando afirmamos que as histórias são interdependentes, queremos chegar, por exemplo, ao memorial “A fábula do preguiçoso”, configurando-se como um dos textos que pode ser lido separadamente sem perder o ritmo e o sentido.
Da mesma forma é a história “Saudade e dor”. Nela encontramos algumas pegadas de Areias no reviver da infância. Os últimos versos daquela primeira obra casam-se perfeitamente com o poemeto do menino Xico, nas páginas de O menino quase perdido. Colocamos os dois excertos lado a lado:
 
 
 
Não deixes que a areia
branca da infância
enferruge e coma
tua coragem.
 Como a aranha tece,
tece a tua teia.
(MIGUEL DE MOURA, 1966, grifos nossos).
 
O menino quase perdido,
como não tem história,
continua a fazer
pegadas na areia.
(MOURA, 2009, p.25, grifos nossos).
 
 
 
Tecer a teia pode ter a mesma equivalência de tecer memórias para guardar a lembrança viva da infância e não “enferrujar o tempo”, ainda que o passado pareça perdido nos momentos de dor e melancolia ou “medo e esperança”, título da vigésima nona narrativa.
O leitor também parece ser o seu objeto nas voltas e cortes reflexivos da vida e da infância, em virtude da fruição e identificação com o texto, quando lê os trechos do poemeto da vida do menino Xico e sente-se tomado pela nostalgia que parece divergir do sentimento da saudade, pois aquela parece ser mais eterna, contida e retida no desejo da memória:
 
 
Ah se eu pudesse guardar
sem virar
sem pensar,
as cinzas da infância.
(MOURA, 2009, p.89, grifos nossos).
 
 
Recordar é guardar e reter o tempo com a sensibilidade da alma para que o passado se torne um agora na memória eterna, quase lírica, rompendo-se com o esquecimento. E o menino da história consegue resgatar a volta ao tempo [quase] perdido nos achados de sua memória, porque ele soube preservar a “sensibilidade em toda a parte, nos interstícios do corpo e da alma, na profundidade do seu estar-no-mundo”. (MOURA, 2009, p.93).
Junto ao estar no mundo desse menino, não faltaram as lembranças da passagem da infância/adolescência para a fase adulta. Em “O fim da infância”, podemos dizer que os traços desses momentos são aflorados na vida do menino Xico no povoado de Picos, sertão piauiense, onde se comprova a linha memorialística de arquétipo autobiográfico. O menino revive os momentos prazerosos da adolescência frente ao pedido de namoro de uma mulher e as despedidas em lágrimas numa manhã. No entanto, o leitor percebe que essa imagem de amores mistura-se à metáfora implícita do vínculo amoroso do autor com sua terra quando lemos o fragmento, a saber:
 
 
 
“Eu me vou... Mas prometo que quando tiver lua nova venho cá, beijar este chão e visitar a casinha onde dormimos a noite. Mesmo que você não esteja mais neste lugar” (MOURA, 2009, 171, grifos nossos).
 
 
 
As memórias são alicerçadas na lembrança que oscila entre a paixão adolescente e a paixão pelo lugar paradisíaco na mente do narrador que fala de Xico. A presença da casa em Picos sugere que o lugar seja tão importante para o personagem quanto à figura da mulher que, por um instante, amou. E mesmo que ela não esteja mais na "terrinha prometida", é para lá que o menino Xico sempre voltará. Neste emaranhado de recordações, temos um narrador consciente e onisciente para assegurar ao leitor que somente ele pode ser, concomitantemente, uma testemunha, uma vez que presenciou cada instante narrado:
 
 
 
Ali terminava um namoro de dois meses, tão sofridos quanto gozados, porque se despedia da infância agora perdida; ficava-lhe apenas aquela lembrança, sua memória. De concreto, somente o último beijo e o único adeus... Sem testemunhas”. (MOURA, 2009, 171, grifos nossos).
 
 
 
De “O fim da infância” ao momento de “Naquela tarde de abril”, o leitor pode visualizar uma longa passagem do tempo, já que o narrador não estará a contar sobre o menino e suas infâncias, mas sobre um menino-velho tentando recuperar os laços ou os fios do tempo, a fim de narrar a paixão platônica por Ruth. Talvez esta última memória seja a mais esperada pelo leitor como se a recordação amorosa transformasse em pegadas de areia, cujas águas do tempo não conseguiram apagar. Neste final, o narrador utiliza-se de recursos imagéticos próximos a Homero para vir à tona a memória que reterá o esquecimento, uma vez que a mesma sensação de reconhecimento da cicatriz de Ulisses, de Odisséia, está presente em Miguel de Moura. Tal exegese é válida se observarmos o momento em que o menino-velho revê a paixão da adolescência, num tempo transcorrido extensamente como a colcha de Penélope, e chega ao reconhecimento da ferida, nas marcas do tempo presente. Segue o trecho:
 
 
 
Aos olhos do menino, era linda, da cor do leite das vacas de seu pai. Da primeira vez que a viu, tinha uma pequena ferida na perna que era um charme” (MOURA, 2009, p.173, grifos nossos).
 
 
 
Posto isto, o narrador mostra-nos que o tempo e a distância entre uma recordação e outra faz do instante perdido o momento recuperado no memorial existencialista. Em toda e qualquer mente humana é presumível que pelo menos duas lembranças permaneçam inabaláveis: a infância e a adolescência, sobretudo quando chegamos ao momento da mais alta experiência humana:
 
 
 
 “O mundo dá muitas voltas e é preciso que a gente não reaja contra os ventos da sorte [...]. Embebidos um no olhar do outro, procurando captar, no que ainda restara: - a face do que foram e já se havia esfarinhado no tempo. Tantos anos!” (MOURA, 2009, p.173-175, grifos nossos).
 
 
 
O sentimento dessas memórias não pôde ser fotografado pelo narrador, todavia a mão que narrou soube reter a imagem fotográfica de cada instante passado, trazendo à baila um memorial da escrita de si e das escritas do outro que há em nós. Para ultimar essas fotografias do passado, o narrador assegurou que a palavra não dá conta de expressar a emoção, mormente num gênero que não seja lírico. Entretanto, leitor, Francisco Miguel de Moura, não mais o narrador, com a sua sensibilidade de poeta, pintou o som das reminiscências com as mais belas imagens, eternizando-se como uma “música de Mozart” ou um “quadro feito por Leonardo da Vinci” (MOURA, 2009, p.175) na vida de O menino quase perdido.
 
 
 
Referências bibliográficas
 
 
MOURA, Francisco Miguel de. O menino quase perdido. Ilustração de Franklin Moura. Teresina, 2009, 182 p.
 
QUEIROZ, Teresinha. A vida começa num sonho. Prefácio. In: _____ MOURA, Francisco Miguel de. O menino quase perdido. Ilustração de Franklin Moura. Teresina, 2009, p.11-15.
 
RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução: Alain François. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2007.
 
 
[* Mestre e Doutoranda em Estudos Literários, na Universidade Federal de Goiás. Blog: http://rosidelmapoeta.blogspot.com]