Alberto da Costa e Silva
Alberto da Costa e Silva

Por Diego Mendes Sousa*

 

O toque plangente e sublime da poesia de Alberto da Costa e Silva (1931-) carrega serenidade e densidade lírica. Poeta completo e profundo, detentor de preciosa linguagem e linhagem, sendo filho do glorioso poeta simbolista e piauiense, Da Costa e Silva, este, autor do soneto Saudade, uma obra-prima da poética brasileira e sempre memorável para mim:

 

Saudade! Asa de dor do Pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento…
As mortalhas de névoa sobre a serra…

        

         O paulista Alberto da Costa e Silva desliza o seu canto de tristeza sobre o olhar lívido e cruel do tempo. Seus poemas são consoadas elegíacas avassaladoras. Atinge-me pelo lamento em “As cousas simples”: Também em ti chora um infante. / Ausculta o teu coração e sentirás o seu pranto, / saudoso da ramaria, do sol e dos muares.

         Existe uma sutilidade anímica nos seus versos, que são inalcançáveis. É como se o instante parasse e as imagens da infância voltassem universais a embalar os signos misteriosos do menino etéreo. Nunca senti alguém rememorar tão bem as sensações da orfandade e da inocência, como Alberto da Costa e Silva. É tudo mágico e dolorosamente real: Ah, menino, protege / o teu padrinho triste, // enterrado no chão / de um outro peito, triste // como um boi a mugir / e o focinho de um cão.

         Identifico-me com as linhas sensíveis e aturdidas do poeta. Suas mãos cavam o desejo perene de um regresso ao passado, em ronda perdida sob o pantempo da vida. Sua viagem tormentosa empreende emoções de altaneira fortaleza. É de um alento humanístico estes versos: Proust, repercute em mim / toda a tua agonia, companheiro. / Deixa, Marcel, que recolha tua tristeza, / como lágrimas num lenço, / do tumulto das páginas de teus livros, / e / grave na minha boca / o sentido mais oculto de tuas palavras.

         As palavras de Alberto da Costa e Silva são infalíveis. Há nelas o poder dos ritos sagrados, que correm ao encontro da mansidão e dos girassóis, também de uma liturgia miraculosa, que traz os metais e as fuligens do que transpassou na existência: Ouçamos o fluir deste curso de rio / entre velhos muros imóveis de fadiga / não apenas meras lajes limitadas e cinzentas / mas pedras tristes e calmas / entre as quais escorre o límpido silêncio / da água que flui sobre a nudez / pura da morte.

         O amor é outra bela tônica na poesia de Alberto da Costa e Silva. Seu fascínio pela mulher amada, a sua Vera, é de um encantamento estonteante. Poesia da verdade, dos magistrais sonetos. Dizer jamais de nós / senão o certo: / o céu, / e o campo aberto.

         Poemas Reunidos (Nova Fronteira, 2.ed., 2012), com apresentação do notável crítico literário Antonio Carlos Secchin, concentra as produções anteriores de Alberto da Costa e Silva, ele que se viu poeta desde a meninice e cuja estreia em livro deu-se em 1953, aos vinte e dois anos de idade, com a obra O parque e outros poemas e, ao longo dos anos, foi a construir uma sólida poética, com as edições hoje raras, em pequenas tiragens, de O tecelão (1962), Alberto da Costa e Silva carda, fia, doba e tece (1962), Livro de linhagem (1966), As linhas das mãos (1978), A roupa no estendal, o muro, os pombos (1981) e Consoada (1993). Além de Ao lado de Vera (1997), que foi distinguida com o Prêmio Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro.

         Alberto da Costa e Silva ensina-me que a leveza ainda sobrevive no coração do homem. A solidão, o desassombro e o arrebatamento das coisas ocultas na memória são a morada e o corcel dos sentidos esvaziados e das percepções silenciosas, colhidos nos poemas da alma lúcida, desse bardo formidável: (No menino, ao portão, / as sombras ardem/ de sol e enxaqueca.).

 Vocação que voa atrás de tudo o que pode ser eterno e efêmero: o menino, o pai, a tristeza, a memória, o passado, o amor e a saudade.

        

*Diego Mendes Sousa é poeta piauiense. Relê a poesia de Alberto da Costa e Silva com contumácia, por se reconhecer nela.

 

 

A NÊNIA DE ALBERTO DA COSTA E SILVA SELECIONADA POR DIEGO MENDES SOUSA

 

Elegia

 

 

Sofrer esta infância, esta morte, este início.  
As cousas não param. Elas fluem, inquietas, 
como velhos rios soluçantes. As flores 
que apenas sonhamos em frutos se tornaram.  
Sazonar, eis o destino. Porém não esquecer 
a promessa de flores nas sementes dos frutos, 
o rosto de teu pai na face do teu filho, 
as ondas que voltam sobre as mesmas praias, 
noivas desconhecidas a cada novo encontro. 
As cousas fluem, não param. As folhas nascem, 
as folhas tombam longe, em longínquos jardins. 
Em silêncio, vives a infância de teus olhos 
e, morto, és tão puro que te tornas menino.

 

 

 

Vigília

       

 

Quando as lágrimas vêm, em vão fugimos 
do que em nós faz o amor, em vão tecemos 
vestes para cobrir o corpo nu, 
que se nutre do pranto, humilde e humano.  
Fazemos nosso leito. A mesa pomos. 
O rosto se derrama em nossas mãos. 
Queremos repartir a fome e o sono. 
Vivemos nossa espera, enquanto, mudos, 
fluímos para o encontro e retornamos 
à infância, mansa páscoa, frágil vime. 
Não mais somos nós mesmos; somos mais 
do que nós mesmos ou alguém mais puro,  
um sonho de não ser, ah, sendo e amando.

 

 

Hoje: gaiola sem paisagem

       

 

Nada quis ser, senão menino. Por dentro e por fora, menino.
Por isso, venho de minha vida adulta como quem esfregasse na pureza e na graça o pano sujo dos atos nem sequer vazios, apenas mesquinhos e com frutos sem rumo. 
Como se escovar os dentes fosse montar num cavalo e levá-lo a beber água ao riacho! Como se importasse à causa humana ler os jornais do dia!
Era melhor, talvez, ficar olhando, completo, perfeito, os calangos a tomar sol no muro, sem trair o silêncio, sentindo o dia, para conhecer o mundo, para saber que estou vivo.
Se não se têm esses olhos de infantil verdade, todas as cousas nos enganam, tornam-se as palavras sem carne com que construímos a árida abstração que é o curral dos adultos.
Depois dos quinze anos, quase nada aprendemos: a dar laço em gravatas, por exemplo.

 

 

Murmúrio

 

 

Meu pai,
a tua essência
superou
o tempo
e a sorte:

deixaste
atrás de ti
alguém
que ficou
a morrer.

 

 

 

Murmúrio

 

 

Vou pedir a meu pai
que me esqueça menino.

 

 

 

Aparição em Fortaleza

       

 

Ruas e sombras de Fortaleza, meninas doces,  
árvores velhas onde esqueci a infância que foi  
tão triste e tão pouca, cidade onde o amor 
está tombado a teus pés, 
frágil e puro 
como uma flor.  
Onde caminho cercado pelos  meus fantasmas, 
entregue aos meninos que são o que fui,  
embalado pela pureza de minhas próprias palavras,  
cansado, tão cansado, Fortaleza, 
quase perdido por vos haver perdido. 

Roteiros de bicicletas pela Praça do Carmo,  
ganhando as distâncias das longas alamedas, 
revendo as frágeis moças que passam 
na doçura morna das tardes,  
recompondo a imagem dos vendeiros encarapitados nos burricos mansos, 
a suavidade dos contornos, a brisa envolvente, os oscilantes jardins,  
os longos e inesperados encontros com o desconhecido,  
os pressentimentos de inúteis e infindáveis viagens 
do menino triste, sentado no muro, a mãozinha no queixo.  

 

Cidade de meu pai enfermo. Minha cidade. 
Cidade onde se pode chorar sobre os muros de saudade.  
Cidade feita para as lágrimas e para adeuses, 
para as súbitas e inexplicáveis alegrias. 
Cidade onde o mar quebra 
com o impulso de velhos marinheiros náufragos 
que subitamente retornassem à pureza das praias.

 

 

 

Soneto a Vera

 

 

Na relva iluminada pelos pássaros,

reclinas o teu corpo. Separada

dos dois lados da noite, quando o sol

recolhe ou desenrola as suas velas,

 

do touro ao meio-dia, e das fases

da lua, e do que muda e se disfarça,

e da grama e das aves que ali pastam,

respiras, te espreguiças, alinhavas

 

o teu ser contra o céu, enquanto passam

o chuviscar, o abrir do sol, os galgos

do verão e do inverno, as estações

 

da manga e do caju. E vais, deitada,

como um barco na praia, alheia ao tempo

a se bordar no bastidor da tarde.