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As narrações em primeira e terceira pessoas, portanto, não se apresentam como instâncias independentes. Por vezes, a forma indireta da terceira pessoa se personaliza. Expressa-o o fato de que o romance se inicia com a narração em primeira pessoa da personagem Ribamar para, posteriormente, no capítulo dez, ser atribuída ao narrador em terceira pessoa, que destaca: “O Manixi naquela época agonizava, improdutivo. Fazia dois anos que o próprio Ferreira não aparecia, e a sede, depois da morte do Capitão João Beleza, ficara sob as ordens de um Ribamar (d’Aguirre) de Souza, oriundo de Patos, Pernambuco, conforme o primeiro capítulo desta minha narrativa.”[1]

            Depreendemos que a impessoalidade da terceira pessoa transforma-se em diversos momentos da narrativa em uma voz paralela à do narrador-personagem Ribamar. Essa outra voz que também fala em primeira pessoa (minha narrativa/Eu, o narrador) e se assume como narrador, concomitantemente cria uma noção de veracidade extratextual, entretanto, há aí também um artifício ficcional: “[...] do que pude conseguir de jornais da época e de cartas de familiares, o desaparecimento de Zequinha Batelão nas margens do Igarapé do Inferno se deu em janeiro de 1912. Não fosse essa uma obra de ficção e poderia citar, em notas de pé de página, as fontes de onde obtive tal informação [...]”[2]

            A abertura do segundo capítulo do romance apresenta-se como um dos momentos em que narrador-personagem e narrador analista se fundem. Essa passagem norteia a própria leitura que devemos fazer do romance, pois a ficção se auto-define:

 

[...] esta narrativa-paródia de romance histórico que define com boa precisão esta minha tardia confissão - vai-lhe revelar a vida tão surpreendente de Ribamar de Souza, aquele adolescente que eu era aparecido num inesperado dia de inverno da Amazônia dentro da chuva compacta de um ostinato extremamente percussivo em comandos de improvisação de uma partitura imaginária, ecológica, de acordes politonais sobre o que sentado estava num banco de madeira no alpendre do tapiri ao som do suporte de compassos 5/4 do Igarapé do Inferno, que sai no Igarapé Bom Jardim que sai no Rio Jordão, que sai no Rio Tarauacá, que sai no Rio Juruá, afluente do Rio Amazonas, o Solimões, aonde estamos retornando.[3]

 

            O entendimento do caráter parodístico atribuído pelo narrador ao romance requer algumas considerações sobre a especificidade desse tipo de discurso. Em seu estudo acerca da tipologia do discurso na prosa, Bakhtin[4] argumenta que o procedimento parodístico do discurso se caracteriza não somente por uma remissão ao objeto referencial da fala, como também a um segundo contexto, um ato de fala de outro emissor, sendo por isso um discurso duplamente orientado ou de duas vozes. Bakhtin estabelece também a diferença entre a paródia e a imitação, fazendo notar que enquanto aquela cria um antagonismo em relação à voz na qual se aloja, essa torna própria a palavra do outro, fundindo-se a ela. Outra peculiaridade que deve ser considerada, segundo o autor, é que a fala parodiada é apenas subentendida. Bakhtin destaca que o campo de possibilidades do discurso parodístico é bastante amplo, pode lançar mão de um estilo enquanto estilo, de modos típicos de pensar social ou individualmente. A construção parodística pode se limitar a níveis da superfície verbal ou atingir níveis mais profundos. O uso parodístico da palavra do outro, lembra o autor, não se dá apenas no campo literário, ele ocorre sempre que há intenção de pôr um acento irônico nas palavras de um outro emissor, criando uma ambivalência em relação a essas palavras: “[...] Em nossa fala cotidiana, é extremamente comum este uso das palavras do outro, especialmente no diálogo em que, freqüentemente um interlocutor repete de modo textual a afirmação de outro interlocutor, investindo-a de outra intenção e enunciando-a a seu próprio modo: com uma expressão de dúvida, de indignação, de ironia, de zombaria, de troça ou algo semelhante.”[5]

            Sendo O amante das amazonas definido por seu narrador como uma paródia de romance histórico, é necessário chamar a atenção para o fato de que a maioria da produção ficcional sobre o ciclo pode ser considerada de enfoque histórico, haja vista essa ficção ter abordado aspectos em consonância com os dados históricos sobre o evento. Desse modo, os principais fatores que envolvem a história econômica do ciclo são retomados pelos ficcionistas. A ficção geralmente faz recortes desses fatores através de cenas que são comuns a muitas obras. O processo de transumância do nordestino, compreendendo os fatos antecedentes, como o sofrimento causado pela seca, a falta de perspectiva na terra natal até a decisão da partida, enfrentando a longa jornada do Nordeste ao Norte, atinge o cerne na ficção através da descrição da viagem. Nessa descrição, geralmente são enfocados o estado de submissão dos recrutados ao seringal, as condições do transporte onde são tratados como passageiros de terceira categoria, sem direito a dignas condições de higiene e à privacidade.

            Em O amante das amazonas, as descrições do barco e da viagem recebem um novo tratamento por meio de uma construção parodística que acrescenta um tom irônico ao tradicional tom de denúncia de outras obras:

 

[...] Navio dentro do qual não cabia mais único engradado de porcos, alojando aquela horda que fedia podre, de suor, esterco de gado e urina – redes se entrecruzando e houve roubo, bebedeira, estupro, briga, facada e morte – um pai esfolou um macho surpreendido com sua filha num vão de esterco; outro, bêbado, mijava ali no chão enquanto escorria até onde dormiam muitos, no chão; sobre um garajau de galinhas um homem sacou de si e se aliviou sob a luz de um candeeiro amarelo cheio de moscas. Era um soldado.

Passamos do Farol de Acaraú ainda dentro daquele porão e paramos em Amarração para largar um cadáver, o preso e dois passageiros cobertos de varíola. Mas não tocamos em Tutóia, aportando em São Luís onde o Alfredo foi dentro d’água cercado por botes, catraias e se transformou em  gigantesca fera [sic] flutuante, lá subindo todos para bordo os vendedores de camarão frito, doces e frutas. Pois não foi uma viagem maravilhosa? [...][6]

 

            A linguagem em que a descrição é posta formula-se através de uma sintaxe não convencional que inclui cortes de conectivos, gerando um caráter sintético peculiar à linguagem coloquial (aquela horda que fedia podre). A sintaxe do texto também apresenta uma disposição de orações que possibilita a interposição de informações e torna significativa a desordem espacial no barco e as relações conturbadas entre os passageiros (redes se entrecruzando e houve roubo, bebedeira, estupro, briga, facada e morte). A escolha de verbos e substantivo característicos da linguagem chula (esfolar, mijar, macho) demonstra a aplicação dos níveis de linguagem, o que permite que a condição dos passageiros se expresse com mais rudeza. Com a frase interrogativa no final do trecho, o sentido irônico se estabelece.

            Um dos pontos mais marcantes nos estudos históricos e na ficção do ciclo, o elemento que se caracteriza como o explorador, é retomado em O amante das amazonas sob um olhar distinto daquele que se convencionou na maioria das obras ficcionais. O que se torna central no romance não é a abordagem maniqueísta em torno desse elemento, mas sua relação com um processo econômico mais abrangente do que a monocultura local. No romance, a personagem Pierrre Bataillon, proprietário do seringal Manixi, em nada se assemelha às tradicionais personagens de seringalistas. Divergindo dessas personagens, Pierre representa uma linhagem “[...] nobre, neto de Duque de Cellis, uma das mais nobres famílias de Espanha, que vinha da antiga Roma, inteligente, culto, falando fluentemente várias línguas [...]”,[7] vivendo como um “[...]fidalgo engastado na floresta, cercado de todo o luxo e de muitos livros [...]”.[8] Pierre não significa apenas o oposto do arrivista bronco enriquecido, seus hábitos e o palácio que constrói no meio da selva sintetizam o aspecto voraz do capital internacional e da cultura estrangeira, impondo sua hegemonia sobre a cultura local através de uma ostentação delirante e esquizofrênica.

 



[1] Ibid., p. 59.

[2] Rogel Samuel, O amante das amazonas, p. 51.

[3] Ibid.,  p. 9.

[4] Mikhail BAKHTIN, A tipologia do discurso na prosa. In: Luiz COSTA LIMA (org.), Teoria da literatura em suas fontes, p. 489-509.

[5] Mikhail BAKHTIN, A tipologia do discurso na prosa In: Luiz COSTA LIMA (Org.) Teoria da literatura em suas fontes,  p. 500.

[6] Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 5-6.

[7] Ibid.,  p. 16.

[8] Rogel SAMUEL, O amante das amazonas, p. 16.