O maçom e barbeiro Chagas Vieira

Elmar Carvalho

Indo ao centro de Teresina, nesta segunda-feira, para tratar de um assunto na prefeitura, resolvi seguir pela rua Lisandro Nogueira até dobrar à esquerda na rua Rui Barbosa, para cortar meus cabelos numa barbearia, que fica perto do prédio do antigo supermercado São Gonçalo, que hoje é ocupado por uma das filiais da Igreja Universal do Reino de Deus (ou pelo menos foi, até bem pouco tempo). Hoje pouco vou ao centro comercial e histórico, que muitos consideram estar se transformando numa espécie de cidade-fantasma. Aos domingos a situação piora, e o centro toma ares de verdadeiro campo santo, cuja expressão uso como eufemismo.

Chegando ao salão, onde cortei meus cabelos tantas vezes, em tempos idos, quanto trabalhei na famigerada e extinta Sunab... Por falar em Sunab, quando ingressei nessa repartição, lotado em sua Delegacia no Estado do Piauí, em 10 de agosto de 1982, eu era, aos 26 anos de idade, o seu mais jovem funcionário. Pois bem, passados todos esses anos, com exceção de dois ou três (e de uns poucos que entraram depois), lamento constatar que esses servidores, como nos elegíacos versos de Bandeira, estão todos dormindo, dormindo profundamente.

Mas, retomando o fio do que dizia, ao chegar ao salão olhei para todas as pessoas que ali se encontravam, à procura do irmão maçônico Chagas Vieira. Não o localizando, dirigi-me a uma pessoa que fazia as vezes de recepcionista, por se encontrar perto da entrada, para perguntar por ele. Temi pelo que iria ouvir, posto que já vinha com certa premonição aziaga. De fato, o rapaz me informou que ele havia falecido. Respondi-lhe apenas:

            – Não sabia... Ele está num outro lugar melhor do que este.

Eu pensava nas palavras de Cristo, e nas outras dimensões de que nos fala a física. Na casa do Pai há várias moradas, disse Jesus.

Em homenagem ao irmão Chagas Vieira, que foi um homem bom, republico a seguir uma crônica, incluída em meu Diário Incontínuo, que um dia transformarei em livro impresso, datada de 30 de abril de 2010:

 

A MORTE E A CEGUEIRA DE KETY

Fui cortar as minhas cada vez mais ralas e raras madeixas com o irmão maçônico Chagas Vieira. Desde 1971, ele exerce sua atividade em Teresina. Conheço-o desde a segunda metade da década de 1980, quando eu trabalhava na extinta SUNAB. Ele trabalhava no Salão Piauí, pertencente ao senhor Felinto Lima, já falecido. Em 1998, fundou seu próprio estabelecimento, o Salão do Povo, situado na rua Rui Barbosa, 441, perto do antigo supermercado São Gonçalo, onde hoje funciona um templo da Igreja Universal.

Durante alguns anos, ausentei meus cabelos de sua tesoura e navalha, por mudanças de hábito e circunstâncias. Há alguns anos, voltei a integrar sua clientela. Antes de adotar posição estática, para ele melhor exercitar as suas habilidades de escultor capilar, pedi-lhe que me repetisse a história de sua cadelinha. Chamava-se Kety e era uma pequinês, pequenina, peluda e de brancura imaculada.

Quando Chagas saía para o trabalho, ela o acompanhava até a porta da rua. Ficava triste, aguardando o seu retorno, quando ia esperá-lo à porta, e ficava se achegando a ele, até ser colocada no colo. Tinha muito amor a seu dono, e a recíproca era verdadeira, na mesma intensidade. A cadelinha chegava ao ponto de comer no mesmo prato dele, com a sua cúmplice permissão complacente.

Teve longa vida, para os padrões caninos. Aos dezessete anos cegou, primeiro de um olho e logo em seguida do outro. Com a cegueira, a cachorrinha, por alguma espécie intuitiva de pudor, ou por receio de incomodar seus donos ou por simples higiene, passou a se esgueirar pelas paredes, como tateando, em busca de alguma saída para fazer suas necessidades fora da casa.

Numa dessas buscas, saiu para a rua, quando foi tragicamente colhida pelas rodas de um carro, que lhe esmagou a pequenina cabeça. O irmão Chagas providenciou-lhe o enterro, no quintal da residência. Mas pela casa ainda vaga a lembrança e a saudade de Kety, que se mantém viva na retentiva amorosa de seus donos.