O loser pode não ser burro, pode ser pior – pode ser loser.
Por Paulo Ghiraldelli Jr Em: 29/11/2011, às 18H24
[Paulo Ghiraldelli Jr.]
Instigados por textos meus que dizem respeito a problemas do ensino de filosofia e ciências humanas em geral, estudantes de pontos distintos do Brasil escreveram-me essa semana, perguntando o que podiam fazer para não se transformarem em réplicas de “copistas medievais”. A resposta que tenho para eles, mas não para as políticas públicas no Brasil, é um pouco dura aos ouvidos de muitos brasileiros. Ela é uma só: precisamos aceitar que a “cultura do loser versus a cultura inteligente” é válida também aqui, e ela está começando a definir as coisas na nossa terra. O que eu quis dizer é isto: na vida há os que decidem ser perdedores e há os que decidem ser vencedores, e essa cultura que caracterizou a América está chegando aqui e vai ser dominante – pegará o bonde quem ficar atento e decir não ser um loser. O que é não ser um loser? Não ser um loser é, antes de tudo, saber aliar e alinhar três coisas: inteligência, esperteza e disciplina. Não adianta ser inteligente e não ser esperto. Não adianta ser inteligente sem ter disciplina. Sabemos que o burro é burro. Pode ser por questões inerentes, que não vão ser sanadas, pode ser por questões adventícias, que podem ser ludibriadas. Mas, e os inteligentes, por que nem sempre vencem? Exatamente por isso: falta-lhes esperteza e disciplina. Os alunos não procuram os seus professores, não conseguem diferenciar os que podem lhes aguçar a criatividade e os que vão colocá-los em jaulas. Podem ser inteligentes, mas não são estudantes espertos. Não sabem tirar vantagem da universidade. Os alunos não colocam regras para suas vidas, vão em mais festas do que o corpo aguenta, consomem uma droguinha aqui e outra ali, não sabem fazer cálculo do dinheiro que têm e, enfim, nunca estão despertos para a aula. Podem ser inteligentes, mas vão caminhar para o buraco porque não adquiriram disciplina. Ser inteligente pode ser algo do berço ou não. Ser esperto e disciplinado é efetivamente coisa do berço. Uma casa com horário e obrigações ajuda a criança a ser, um dia, um estudante universitário vencedor. Uma casa em que a idéia de tirar vantagem não é maculada, e aparece em um ponto de vista positivo, leva a criança a ser, depois, um estudante universitário esperto. É claro que tudo isso depende, em muito, de condições mais amplas da história e da geografia. Um tempo de marasmo não ajuda as crianças. Um local sub-desenvolvido deixa suas marcas. Mas, em geral, quando não se está no fim do mundo e no fim dos tempos, uma casa atenta à disciplina e ao tirar vantagem, gera tudo aquilo que o inteligente precisa para não ser, uma vez na faculdade, um loser. Mas, na universidade, ainda dá tempo de mudar. Principalmente em ciências humanas. Não é difícil adquirir disciplina, ao menos para aqueles que podem recuperá-la de algum ponto em que foi perdida no passado. Não é difícil ser esperto, ao menos para aqueles que, sendo inteligentes, percebem bem o que é a esperteza, o que é poder tirar vantagem – tiramos vantagens quando agimos corretamente. Quem age incorretamente não está tirando vantagem, esse é uma ilusão corriqueira. Os americanos não só ridicularizam o loser como também o deixam marcado. No Brasil, cada vez mais, nós mesmos, adultos e bem localizados na sociedade, fazemos isso. Vemos um jovem que é um loser nato, temos dificuldade, mais tarde, de ajudá-lo a arrumar emprego. Afinal, poríamos a mão no fogo por um loser? Indicar uma vaga, ajudar num concurso, abrir portas? Para quem? Ora, não para os losers. Os losers comprometem seus amigos. Apadrinhar um loser é coisa para a Igreja, não para cada um de nós individualmente. Cada vez mais os brasileiros começam a viver em uma sociedade de mercado cujo padrão comportamental imita o dos grandes centros. O loser, portanto, vai se deslocando para o seu slogan preferido: “é preciso paciência, cada um tem seu tempo”. Quando ele acorda, todo mundo está na frente. Até mesmo os que concordaram com o seu slogan, aparentemente. Em filosofia e ciências humanas, acoplado a tudo isso, vem a questão chave, no interior do ensino propriamente dito: que tipo de exercício o estudante faz? Por esses dias, tive uma boa notícia. Veio do meu filho, Paulo Francisco, estudante de filosofia no Estado de S. Paulo. O professor dele deu exercício no seguinte formato: “elabore ou acolha uma tese e crie uma argumentação em sua defesa”. Um exercício livre que, em parte, depende de imitação, mas que em boa medida coloca o estudante na tarefa da criação – a criação da sequência lógica do encadeamento correto dos argumentos. Não é um exercício fácil. E o Paulo Francisco, primeiro anista, já chutou alto logo de cara: “vou defender a tese de que a liberdade é uma ilusão”. Ele fez um texto correto e, então, veio discutir comigo. Passamos a noite discutindo as diferenças entre razão e causa, que tinham a ver com o cerne do argumento dele. O caminho era esse mesmo. Em parte, ele está reiventando a roda. E logo, pela história da filosofia, ele saberá disso. Mas, por enquanto, ele se imagina um criador e, por isso mesmo, realmente o será. Pensar livre e criativamente não é pensar errante. O errante tem tudo para virar o errado. O livre é diferente. O vôo livre não tem motor, mas isso não quer dizer que não tenha leme! É aí que entra o professor: mostrar que o leme pode ser usado mesmo com os motores desligados ou, melhor, que deve ser usado. Usado corretamente, dará tudo que se pode ter quando se está sem motor – inclusive as vantagens nas desvantagens. Esse exercício livre requer inteligência. Mas o Paulo Francisco não conseguiria trabalhar nele, como está trabalhando, sem disciplina e esperteza. 2011 Paulo Ghiraldelli Jr. , filósofo, escritor e professor da UFRRJ