Capa de "O Viajor de Altaíba". Registro fotográfico de Sander Brown.
Capa de "O Viajor de Altaíba". Registro fotográfico de Sander Brown.

Trecho sobre "O Viajor de Altaíba", extraído do longo e conceitual estudo acadêmico do Doutor João Carlos de Carvalho:

 

Em outro livro, perceberemos o desejo de dispersão ainda vigoroso, entre a divergência e a convergência, como um mote contínuo da lavra de Diego Mendes Sousa, mesmo que seus títulos promovam uma ideia de unidade temática, a princípio (Gravidade das xananas; Tinteiros da casa e do coração desertos; O viajor de Altaíba; Velas náufragas; Fanais dos verdes luzeiros). No poema “Altaíba”, o início é sintomático do mesmo Eu lírico que busca o seu refúgio entre fronteiras, pois, entre o real e o irreal, ele se alimenta do esparso, do seu “não lugar” inventado, nem verdade, nem mentira: “Nasci na Parnaíba/ Amo Altair/Moro em Maringá. // Altaíba, meu país/de hibernar” (2019c, p. 14). Sua utopia ganha relevo ao juntar dois radicais de nomes próprios, que poderiam se juntar a outros tantos radicais que simplesmente reforçariam sua natureza vagante ou excruciante à sua “vontade de representação”, ou de pelo menos permitir mais um trânsito para sustentar a linguagem que se pausa como estratégia (hibernar). Em “O exílio” essa natureza poética vag(c)ante, que se engasta no abstrato do concreto, fica ainda mais evidente o caráter de reinvenção da natureza: “Quando deixei os ares/da terra santa/resolvi andar/em sina/cigana/para chegar/no choro/dos guarás” (2019c, p. 16). Sempre de lugar nenhum à solidão do desumano, ou sempre o desafio de se espojar no encanto do desencanto das palavras que apenas sugere um possível percurso, onde as promessas são sempre luxos do pensamento. Em versos muitas vezes enigmáticos, a poesia de Diego Mendes Sousa investe no percurso dos sentidos que já não são sentidos, como em “A coragem”: “O difícil é a ponte/repetir o lado/de um raio/nas duas/ claridades” (2019c, p. 20). A não distinção revela o desejo de uniformidade de sua utopia apoética, de saber que a linguagem tem um limite e se autoprovoca para tentar a autodissolução por meio da beleza que também se extingue e vive do brilho anterior. O desejo é sempre um desejo de um passado de memória cada vez mais abstrata. Em “O porto”, a capacidade de enlace surpreende pela naturalidade como o Eu lírico se antecipa à própria ameaça de dissolução:

 

Como um casulo estrangeiro

estou no ninho de pássaros

aberto ao continente

e ao sagrado de um voo

 

O poeta é ave

e o porto é escuro

 

não se conhecem

o trovador

e o suposto rasante

(2019c, p. 26)

 

Ao ler e reler esses versos, de uma exatidão impressionante para captar o momento que morre, o Eu lírico propõe a sua armadilha como uma resposta para ocupar um lugar que não existe, ou um “porto” que nunca se deixará aportar. Observemos os termos comparativos iniciais: “casulo estrangeiro”; “ninho de pássaros”; “aberto ao continente”. Estão todos enlaçados em uma ideia de abstinência ou de não ação. O voo é sagrado, porque contemplativo. O poeta como ave, por meio do próprio ato intangível do voar, é o contemplador do nada. Ao final, o poeta e o pássaro se distanciam, como fundamento dos destroços a manter a sobrevivência da linguagem a qualquer custo, o que no fundo investe mais uma vez na sua utopia apoética. Essa condição de investir sempre no abstrato, para manter alerta o subterfúgio de rearticulada rememoração, procura, no fundo, sempre uma outra esfera de ancoragem, sim, um porto que possa ajudar o Eu lírico na sua luta de crua e cozida (dis)simulação, como no poema “O mistério”: “Aprendeu a alma/nas esporas de um raio/e o coração/na agulha/de um sussurro: // vida” (2019c, p. 42). O Eu lírico só sabe a vida que se tornou sopro poético. Na melhor das hipóteses, em termos de sobrevivência da linguagem, vida e poesia estão unidas para reforçar a estrutura claudicante que mantém a mínima tensão para o próprio refúgio da ameaça. Todo o seu trabalho, aqui, se consolida em mais uma vagueza ou uma nostálgica fabricação de uma reminiscência a partir de estilhaços que se juntam à força do acaso por meio de uma consciência poderosa e poética do seu papel de transações entre fronteiras fluídicas, ou melhor, na imprecisão de qualquer realidade possível, mesmo que ela nos remeta a paisagens factíveis de uma geografia física ou humana.

Vejamos como em outros fragmentos, de mais poemas do mesmo livro, há todo um desfilar de tateabilidade estratégica em torno do nada, a ponto de podermos dizer que, a certa altura, há uma nostalgia do desejo de se sentir nostálgico em relação ao próprio nada, ou ao próprio desejo, já que o trabalho de esvaziamento foi sendo primoroso na sua maneira de engastar as metáforas no caminho de uma permanência vaga, ou vacante, em uma memória intraduzível nos termos de revelação em que se colocam: “A revolta/do caminho grave/o vazio inesperado/do vagido” (2019c, p. 45). Lembrar aqui é perder a própria lembrança. Ou, mais adiante, “na profusão da pele // de bradar sem ecos” (2019c, p. 46), em que qualquer sensação física se torna uma aproximação ao drama metafísico que o prazer não pode sustentar. Ou, então, “Amar/é uma armadilha/certeira/nos frutos/carcomidos/da beleza” (2019c, p. 68). Nesse caso, o prêmio, ao final da caminhada, é engodo do que foi prometido pelo próprio percurso poético. E então, “Aqui/ a passagem/dos dias/é tufão/em silêncio” (2019c, p. 70). Sendo assim, a vida não se aprimora, pois o que se mantém é a imagem como sugestão de sobrevida. E quando “minha avó chamava-me/para alimentar-me/do pão ressecado/das horas forasteiras/de seu rosário/sabido/e repetitivo” (2019c, p. 76), notamos que qualquer reminiscência é apenas rumor de uma enunciação do abstratamente reconhecível, na verdade, sobretudo, uma enunciação de um percurso possível e impossível, pois o referente é quase puro ardil por meio de uma trama entre o passado e o que o presente poético desejaria reter com o permanente (“sabido” e “repetitivo”).

 

Estudo de João Carlos de Carvalho, doutor em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É poeta, contista, romancista e ensaísta. Professor Titular da Universidade Federal do Acre (UFAC) há 28 anos.

 

 

Fonte:

 

SOUSA, D. M. Gravidade das xananas. Guaratinguetá: Penalux, 2019a. 60 p.

 

___. Tinteiros da casa e do coração desertos. Guaratinguetá: Penalux, 2019b. 98 p.

 

___. O viajor de Altaíba. Guaratinguetá: Penalux, 2019c. 99 p.

 

___. Velas náufragas. Guaratinguetá: Penalux, 2019d. 99 p.

 

___. Fanais dos verdes luzeiros. Guaratinguetá: Penalux, 2019e. 89 p.