O IMAGINÁRIO CONFLITO RELIGIÃO X CIÊNCIA

Miguel Carqueija


“Reconhecendo Deus como autor da Criação e como Pai da História, cai por terra a oposição entre fé e razão.”
SANDRO GRIMANI, “O invisível na harmonia lógica do cognoscível”


    De há muito se fala e se incute no imaginário dos povos a existência de um conflito entre Religião e Ciência. Em muitas ocasiões a fórmula usada é Igreja X Ciência, e a referência geralmente aponta para a Igreja Católica, que tem as costas mais largas.
    Hoje em dia a grande mídia escancara mesmo, escandaliza com manchetes sensacionalistas, e as pessoas, em geral pouco afeitas à Hermenêutica (a ciência de discernir a verdade, não se deixar enganar por falácias), acabam acreditando nesse suposto conflito. O resultado é prejudicial ao prestígio da religião institucional, que passa a ser vista como retrógrada e obscurantista. Mas tudo isso é mentira, côo procuraremos demonstrar.
    A bem da verdade, qualquer pessoa com um mínimo de boa fé e de interesse em se informar, pode constatar a imensa atividade cultural, artística e científica das instituições da igreja Católica — inclusive o Vaticano — e dos católicos como indivíduos. Esta atividade ininterrupta e orgânica já dura há dois milênios.
    Um ótimo exemplo, recentemente lembrado pelo grande Papa Bento XVI, é Santo Alberto Magno, Doutor da Igreja, falecido em 1280. Conforme vemos na Wikipedia, “foi um frade dominicano que tornou-se famoso por seu vasto conhecimento e por sua defesa da coexistência pacífica da ciência e da religião.” E também: “Ocupou-se em várias áreas do conhecimento, como a mecânica, zoologia, botânica, meteorologia, agricultura, física, química, tecelagem, navegação e mineralogia” (alguém acha pouco? Parece até Leonardo Da Vinci). “As suas obras escritas encheram 22 grossos volumes e exemplificou como viver com equilíbrio e graça a fé não contradiz a razão.”
     Ora, ninguém julgue que se trate de fato isolado. O número de católicos dedicados à Ciência e às invenções é imenso. Alguns se destacaram bastante, inclusive sacerdotes como Copérnico, Mendel, Landell de Moura, Bartolomeu de Gusmão, Moreux e Lemaitre.
    A moderna propaganda liberal (não esquecendo que o liberalismo, acusando embora a Igreja de muitos crimes, matou o pai da Química, Lavoisier, na guilhotina — e com milhares de outros cidadãos) faz questão de apresentar a Idade Média européia como a “Idade das Trevas”. Um exame desapaixonado mostra o quanto isto é uma falácia. Para início de conversa, na Idade Média surgiu a Universidade — uma das grandes contribuições da Igreja à civilização. Foi de fato, o milênio medieval, uma era de luzes intelectuais impressionantes, muito superior às antigas civilizações pagãs. Compare-se o ambiente de Cartago pagã (vide “Salambô”, de Gustave Flaubert) com o da Europa católica, podem mesmo pegar um romance altamente crítico, “O nome da rosa”, de Umberto Eco. Com todas as mazelas com certeza atribuíveis à Idade Média, a diferença é gritante (os pretensos deuses pagãos, como o Moloch de Cartago, costumavam ser vistos como entes cruéis que deviam ser aplacados com sacrifícios humanos).
    Então, a época que nos legou as obras de Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Dante Alighieri, São Bernardo de Claraval, São Francisco de Assis e tantos outros nomes notáveis, é obscurantista?
    O casamento entre a religião cristã e a ciência mostra-se claramente, também, no luminoso episódio da Reforma do Calendário, na substituição do Calendário Juliano pelo Gregoriano, ainda hoje em vigor. O nome deste calendário vem do Papa Gregório XIII, que o promulgou em 1582. Esta modificação constitui, em si, um intenso trabalho científico chefiado por Frei Cristóvão Clavius, grande matemático, cognominado o “Euclides do século XVI”. Como se sabe, o antigo Calendário Juliano encontrava-se com erros acumulados ao longo dos séculos e tornara-se obsoleto. O fato em si é extraordinário e bem ilustrativo do vanguardismo da Igreja. A Reforma do Calendário pode ser comparada, por exemplo, ao “Ano Geofísico Internacional” ou ao Projeto Genoma.
    Para mencionar um exemplo mais recente e brasileiro, temos o Padre Roberto Landell de Moura (1861-1928), nosso gênio da Física e pioneiro da radiodifusão, injustamente esquecido e dificultosamente redescoberto pelo Brasil! Hoje temos acesso a muita coisa sobre ele, graças inclusive à internet; mesmo assim a maioria dos brasileiros, mesmo cultos, não o conhece!    
    Vejamos alguns tópicos do livro “O incrível Padre Landell de Moura” (“O precursor brasileiro das telecomunicações”), da segunda edição (Biblioteca do Exército, 1984). Na apresentação, do Ministro Haroldo Correa de Mattos, podemos ler: “Injustiçado e incompreendido a seu tempo, como sói acontecer com tantos outros grandes vultos da humanidade, ao Padre Roberto Landell de Moura cabe preeminente posição na galeria dos homens ilustres deste país. (...) Muito antes de Marconi o padre brasileiro já havia testado o telégrafo sem fio, operando uma transmissão de oito quilômetros ligando dois pontos na Capital paulista. Foi também o precursor da válvula eletrônica, componente essencial para o desenvolvimento da radiodifusão.”
    E Ernani Fornari, o autor do livro, desvenda muita coisa sobre o gênio e o pioneirismo de Landell de Moura. Eis o que ele diz no capítulo intitulado “A verdade começa a aparecer através da mentira consagrada”:
    “Entretanto, para que se tenha uma idéia do quanto os conhecimentos do Padre Landell de Moura, já nessa época, estavam avançados no campo da telecomunicação, é suficiente saber-se que de sua patente submetida ao julgamento do “The Patent Office”, de Washington, em 1901, já consta, como demonstraremos na segunda parte deste livro, a recomendação do emprego das ondas curtas para aumentar a distância das transmissões!”  
    Note-se que a ligação do Cristianismo com a Ciência, a Arte e a Cultura chega a ser simbiótica e vem desde a origem. O próprio evangelista São Lucas é reconhecido como médico, e não faltaram grandes escritores nos primeiros séculos da Era Cristã. São Bento é considerado mesmo como o “fundador da Europa”. O que a Igreja fez pela educação ao longo dos séculos “não está no gibi”, para usar uma expressão mais popular; ainda em tempos recentes tivemos o extraordinário caso das Escolas Salesianas, criadas por Dom Bosco (São João Bosco, 1815-1888), nascido no Piemonte (Itália) e que deu início à sua gigantesca obra de educação e catequese em Turim, tirando crianças da via pública, onde se perdiam, dando-lhes abrigo, sustento, escola e profissão. As Escolas Salesianas tornaram-se uma obra duradoura e de gabarito internacional.
    Falemos de Gregor Mendel (1822-1884), monge agostiniano, que foi botânico e meteorologista, universalmente reconhecido como o descobridor das leis da Genética, dando o empurrão que um dia iria desembocar no grandioso Projeto Genoma. Nasceu na Silésia, que pertencia à Áustria, e viveu em Brno (atual República Checa). Seus estudos com as plantas resultaram nas “Leis de Mendel”, que falam sobre a hereditariedade. Um dos grandes gênios do século XIX!
    Poderia multiplicar os exemplos, alongando em demasia este artigo. Mas prefiro encerrar com uma reflexão. Na vida real os sacerdotes, freiras e leigos católicos costumam ser pessoas bastante razoáveis — mesmo quando não são cientistas e escritores, mas muitos se dedicam a outras atividades além do apostolado religioso: magistério, enfermagem, obras sociais, ou mesmo funções artísticas: cantores, músicos, compositores. O conhecido Frei José Mojica era um tenor. Como são diferentes os clérigos e outros personagens católicos da literatura anticlerical — de Aloísio Azevedo, Monteiro Lobato, Érico Veríssimo, Orígenes Lessa e outros. Indivíduos mesquinhos, bitolados, tapados, ranzinzas e mal-humorados, cuja pregação se limita a pecado, culpa e castigo, em suma, carrancistas e, por vezes (como em “O mulato”, de Azevedo) até criminosos. Por que esses autores — ao que parece, profundamente ignorantes do Catolicismo — insistem numa visão tão limitada e pejorativa do sacerdote e do católico em geral?