(Miguel Carqueija)

A monstruosidade tem face humana

 

O HOMEM DE AREIA

 

Miguel Carqueija

 

 

Em memória de E.T.A. Hoffman

 

 

         Minha infância foi marcada por uma tragédia assustadora, tão insólita e hedionda que até hoje, passados tantos anos, custa-me crer que realmente tenha ocorrido e, o que é pior, ocorrido comigo. Não sei como passei pela espantosa provação sem enlouquecer, pois até mesmo uma pessoa adulta e calejada encontraria dificuldade em suportar as coisas que testemunhei. Não sei o que pensar do universo. Às vezes imagino, em meus piores pesadelos, que a normalidade aparente do nosso mundo não é mais que uma fina camada, que as garras do monstruoso e inominável a qualquer momento poderão perfurar... e estraçalhar.

         Como irei começar minha história? Talvez descrevendo o triste ambiente da minha infância, passada na lúgubre e decadente cidade de Pedra Torta, no nordeste fluminense. Eu morava com meus pais, que eram gente pobre, embora vivessem num casarão, porém arruinado por cupins e carunchos: um casarão que parecia uma escola velha e abandonada. As casas próximas eram também antigas e gastas, porém menores; e algo afastadas.

         Crianças são facilmente impressionáveis e, por isso, muito do que começou a acontecer poderia ser creditado a essa credulidade infantil; mas certos detalhes impressionantes parecem afastar essa hipótese cômoda.

         Vou tentar concatenar os fatos, tal como se apresentam ainda nítidos em minha memória, da melhor maneira possível. De início observo que aquela casa, comprada por minha família nos idos de 1925, era tão sinistra por dentro quanto por fora — senão mais ainda. Eram dois andares, sem contar o sótão imenso e um terraço esquisito, algo deslocado naquela arquitetura colonial.

         De longe não se avistava facilmente aquele casarão, por causa das tílias e loureiros que se interpunham; mais distintamente se percebia no caminho que passava por uma velha ponte de pedra limosa, sobre um riacho que desembocava no Paraíba do Sul. Quem por ali se aproximasse — ou pelo menos assim eu sentia — julgava-se espreitado por olhos desconhecidos por detrás das venezianas da casa. Entretanto, afora meus quatro irmãos e meus pais, uma irmã de criação e eu próprio, ninguém mais ali se encontrava.

         Corriam histórias estranhas sobre o passado daquele prédio. Eu tinha com efeito nove anos de idade quando pela primeira vez escutei falar que aquela casa era do “Homem de Areia” e que ele a utilizava nas ocasiões em que deixava seu exílio na Lua. Embora menino da roça, eu já não era tão bobo e não acreditava nem em Papai Noel, nem em cegonha, mas, por qualquer razão, a referência ao Homem de Areia, feita por um garoto mais velho da escola, me perturbou. Perguntei-lhe o que era o Homem de Areia e ele respondeu:

         — Ué, você nunca ouviu falar? É um cara que joga areia nos olhos das crianças para que elas durmam. Você não o vê e nem sente a areia, mas é assim que o sono vem.

         — Ah, é? E como é que você sabe que aquela casa é dele? Ele deve ser mais ocupado que o Papai Noel, se tem que andar pelo mundo inteiro jogando areia invisível nas crianças...

         — Ele deve ter ajudantes, é claro. Mas essa casa que os seus pais compraram estava vazia há cem anos. Ninguém a comprava por causa do Homem de Areia. Mas os seus pais são de fora, não sabiam de nada...

         — Ah, você está de gozação comigo...

         — Gozação? Você vai ver só quando ele aparecer para reclamar os seus direitos sobre a casa. Ou você acha que ele vai deixar que estranhos ocupem a casa dele?

         Eu procurei rir das asneiras do Eusébio, mas por qualquer motivo aquela história não me saiu da cabeça, como acontece com aquelas canções chatas porém marcantes que ficam num “ritornello” em nossas mentes por tempo esquecido.Ainda me lembrava dela às nove da noite, em meu pequeno quarto, quando me preparava para dormir. Eu ia fazer as orações que o Irmão Enésio tinha me ensinado no catecismo, quando minha atenção foi despertada por um nicho na parede de madeira velha. Eu já conhecia aquele nicho e o objeto que nele se encontrava; estava tão acostumado que nunca tivera maior interesse por ele. Agora, porém, ele me chamava a atenção de uma forma inaudita, insólita.

         Era uma ampulheta.

         Hoje em dia esse objeto é muito avistado nas telas dos micros, mas já existia milênios antes dos Words, Windows e Microsofts. Pouca gente já se pôs a meditar no significado oculto das ampulhetas, esses relógios de areia que, ao esvaziarem de um lado e encherem do outro, basta apenas serem virados para que o processo recomece sem tirar nem por... como se o tempo estivesse invertido. Virar o tempo pelo avesso... Está aí uma idéia atroz, ridícula, mas o Stephen Hawking não levou isso às últimas consequências no seu livro e no seu filme “Uma breve história do Tempo”?

         Aquela ampulheta devia medir um palmo de altura, era de cristal e folheada a ouro no seu arcabouço. A areia que nela escorria era finíssima, como se desgastada por milhões de anos de ventanias. Corria sempre até verter inteiramente, da parte de cima para a de baixo... Aí era só virar, e o processo se repetia “ad infinitum”.

         Fui dormir pensando na ampulheta, cujo escoamento demorava seis horas... a quarta parte de um dia.

         Um estranho pesadelo começou a tomar conta de meu espírito. Eu me encontrava num mundo nebuloso e incerto, onde a própria lei da gravitação universal de Newton parecia deformada. Uma geometria louca me envolvia em meio a uma espécie de deserto marrom, onde dunas assustadoras, maiores que as do filme do Dino de Laurentiis, chacoalhavam e se contorciam, enquanto a areia dos milênios era soprada por um vento fantasmagórico e demoníaco, uma espécie de simum maléfico que parecia penetrar a medula óssea. Eu perdia repetidamente o equilíbrio e tentava proteger os olhos daquele vento arenoso. Estava escuro, nuvens cobriam o Sol e parecia noite. Cambaleando, caindo de quatro naquele solo mutável e tentando prosseguir caminho, sem nem saber onde eu queria chegar, pareceu-me escutar o ruído de passos pesados e de uma respiração ofegante e entrecortada, uma dispnéia medonha, como eu nunca ouvira até então, e que até eco produzia. E tudo aquilo se aproximava. Então, em meio à neblina cambiante, ao uivo do vento e à tempestade de areia, eu vi, ainda a distância, o vulto enorme, indistinguível em seus detalhes, de um homem, ou um ser, que caminhava com extrema dificuldade, arfando, curvado sob o peso de um enorme saco, parecendo arcar com o ônus dos séculos e dos milenários universais...  

         Não sei de onde eu tirei todas essas impressões que, não obstante, impregnaram-se indelevelmente no meu espírito, perturbando-o pelo resto de minha vida. E quando muitos anos depois eu vi a figura do Homem de Areia nas páginas de um livro de ocultismo conhecido como o “Necronomicon”, o reconhecimento foi imediato.

         Em minha curta vida eu sempre achara que o monstruoso, o inominável, não ocuparia uma forma propriamente humana. Seria um dragão, um polvo ou até um dragão-polvo (como o ser mítico que chamam de Cthulhu); seria um ciclope, um ogro ou uma serpente marinha, mas não um homem. E no entanto lá estava aquela aparição hedionda, cujo nariz enorme era coberto por verrugas, cujos poucos fios de cabelo visíveis fora do chapéu ensebado pareciam arame farpado e cujos dedos pareciam as garras dum abutre. E aquele homem horrendo e de olhar furioso caminhava pesadamente na minha direção, enquanto eu, cada vez mais apavorado, esforçava-me por fugir, mas não conseguia sair do lugar, como se estivesse pregado ao solo... e gritava, gritava, de puro pavor...

         Meus gritos acordaram a casa toda. Teriam acordado o quarteirão inteiro, se morássemos num quarteirão. Meus pais eram rudes e incultos, roceiros mesmo. Em vez de compreensão, ganhei uma surra dupla.

         Como já estivesse com nove anos, tinha o meu próprio quarto e por isso dormia sozinho. Privilégio considerável, se levarmos em conta a nossa pobreza. As razões estavam nas dimensões da casa, mambembe porém imensa. Até que mamãe achou que eu poderia dormir com meus irmãos mais novos, Júlio e Joaquim, mas papai, mostrando o cinto, gritou que eu tinha que “aprender a ser homem”. E que me daria uma surra maior se eu voltasse a acordar a casa.

         Já se viu entre dois fogos alguma vez?  

 

 

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         Mas o fato é que o Homem de Areia voltou a me aparecer nas noites seguintes. A coisa ficou complicada porque meu pai não queria dar o braço a torcer de me deixar dormir em outro quarto e a Professora Irene acabou por chamá-lo para uma conversa, estranhando ver-me, dia após dia, entrar na sala de aula com marcas de cinto nos braços e nas pernas.

         Uma noite eu resolvi não dormir. Pareceu-me que aquele demônio só teria poder sobre mim se eu adormecesse, que ele só poderia existir ou se manifestar no mundo onírico. Assim eu pensava, embora nem conhecesse a palavra “onírico”.

         As horas foram se passando. A princípio eu resistia bem, permanecendo acordado no escuro para não chamar a atenção dos parentes. Mas, pouco a pouco, o sono foi se acumulando e pesando nas minhas pálpebras. Mesmo andando de um lado para o outro, não conseguia afugentá-lo. Quando a fatídica hora da meia-noite se aproximou, eu estava já sendo vencido. A vontade de deitar e adormecer era forte demais e entretanto a idéia de acordar todo mundo aos gritos depois da meia-noite me apavorava. A reação de papai ia ser pior ainda. Em desespero de causa eu me aproximei da ampulheta, fracamente visível à luz noturna:

         — Você deve estar aí dentro. Mas eu vou te dar um jeito!

         Saí do quarto sorrateiramente, arranjei uma caixa de fósforos na cozinha e uns jornais, e ao voltar estendi algumas folhas no chão e ali depositei a ampulheta. Risquei então um fósforo, que falhou; risquei outro, que quebrou. Por fim, risquei um terceiro e consegui atear fogo ao papel.

         Sabia que tudo naquele objeto era incombustível, mas tinha a esperança de queimar o mal com o poder purificador do fogo. Então peguei uma bola de boliche que eu tinha e com ela esmaguei a ampulheta, arrombando-a e expondo a areia às chamas.

         Hoje eu compreendo que devia ter jogado a coisa no rio.

         Ao contato com a areia, as chamas se ampliaram de maneira assombrosa. Fiquei horrorizado: logo me vi diante de um verdadeiro incêndio e fugi como um tresloucado.

         É claro que eu gritei, que acordei todo mundo. Só que as chamas se espalharam com a fúria de um vendaval, devorando tudo a seu redor. Era estranhíssimo, pois não soprava vento algum dentro de casa e nem havia ali tantas coisas que fossem inflamáveis.

         Eu sobrevivi. Eu e minha irmã de criação. Meus pais, meus irmãos, os bichos da casa — todos morreram, exceto as galinhas e o galo.

         Nunca mais voltei àquela casa. Nossos tios de Campos nos acolheram e lá ficamos.

         E agora, doutor? O senhor entende porque tenho tanto medo das ampulhetas?