O HEROICO MACAQUINHO
Por Elmar Carvalho Em: 19/04/2012, às 15H20
ELMAR CARVALHO
Nos tempos em que a TV ainda não havia escravizado as pessoas, em que os bandidos eram poucos e os ladrões eram sutis, praticamente invisíveis, já que os furtos e roubos eram praticados discretamente, nas caladas das frias madrugadas; nos tempos em que as pessoas podiam ficar à porta de suas casas, sentadas em cadeiras postas sobre as calçadas, os vizinhos conversavam à vontade e sem pressa, enquanto as crianças brincavam, ao som das cantigas de roda, que ainda hoje ressoam na memória dos saudosistas. Nesse tempo as pessoas contavam estórias de Trancoso e de outros geniais mentirosos. Muitas eram estórias do tempo em que os bichos falavam, como se dizia, geralmente na abertura da narrativa. Macacos, onças, cachorros, jacarés e outros animais de menor “ibope” povoavam essas fábulas, muitas de fundo moralizante ou edificante.
Além dessas estórias, li ou ouvi alguns poemas cuja temática eram peripécias em que os protagonistas eram os bichos. Dois desses textos narravam episódios que tinham como heróis cachorros. Não mais recordo os detalhes do entrecho. Talvez estejam disponíveis na internet, mas não fui averiguar. Num deles, um dono levou o seu cão sarnento, velho e doente num barco, para soltá-lo distante da praia, para dessa forma matá-lo e livrar-se do animal, que já se lhe tornara um fardo. Todavia, para sua surpresa, ao amanhecer, encontrou o animal morto à sua porta. O animal, numa devoção impressionante ao dono, resgatara das águas um chapéu da maior estima do homem, caído quando este se curvara para lhe arremessar nas ondas.
Em outro longo poema, o dono da casa, ao regressar de madrugada ao seu lar, encontrou o quarto de sua filhinha revirado, com o berço fora do lugar; como não ouvisse choro e notasse manchas de sangue em seu cão, deduziu que ele havia matado sua filhinha. Imediatamente o abateu a tiro. Um pouco depois, descobriu um lobo morto, e viu que a sua criança dormia com a despreocupação de um anjo. Arrependido, torturado pelos aguilhões do remorso, constatou que o seu cachorro travara medonha luta com o lobo, para salvar sua filha. Eram dois poemas comoventes, que levavam as pessoas às lágrimas.
Dias atrás, soube pela internet de um caso verídico, acontecido com um filhote de cão e um pequeno macaco. Durante um grande incêndio numa fábrica chinesa, em que houve intervenção do corpo de bombeiros, quando menos se esperava irrompeu de dentro do prédio, tomado pelas chamas, de modo espetacular e surpreendente, um macaquinho a trazer, seguro pelas patas dianteiras, um filhote canino, quase do seu tamanho. O macaco, ereto sobre as patas dianteiras, curvava o corpo para trás, em tremendo esforço, para equilibrar o peso do cãozinho, que conduzia à sua frente, segurando-o com suas mãos. Notava-se que o macaco estava com os olhos esbugalhados, totalmente focado no esforço descomunal que fazia para salvar o filhote que não era seu, que sequer era de sua espécie.
Numa época em que vemos seres, ditos humanos, matarem seu semelhante por causa de um celular, um relógio ou alguns centavos, em assalto a mão armada, esse episódio me comoveu profundamente. Achei um episódio sublime, digno de uma epopeia como as de antigamente, merecedor de que um Homero ou um Camões o narrasse, em versos magistrais. Fiquei a imaginar o que levara o macaquinho a violentar o seu instinto de sobrevivência, para retirar do prédio em chamas aquele filhote de cachorro, quase do seu tamanho; que amor, que desprendimento o levara a cometer aquele ato de bravura, quase loucura?
Acredito que, enquanto o homem maltratar os animais, com chicotadas e pontapés, ainda terá muito o que aprender e evoluir; enquanto os maltratar, impondo-lhes a escravidão de lhes carregar fardos pesados, sob o terror das chibatadas, o ser humano ainda estará muito distante da santidade. Por milênios e milênios, cavalos, burros, jumentos, camelos, bois e dromedários têm sido alimárias, a cumprirem jornadas estafantes de penoso trabalho, em prol do homem, que lhes domestica, escraviza e maltrata. Talvez seja chegado o momento de se criarem leis que libertem esses animais. O homem, de há muito, já tem as próteses dos carros e motocicletas, e bem poderia alforriar esses nossos irmãos, como disse Gonzaga e padre Vieira (não o Antônio, o sacro orador).
Muito ainda precisa ser feito. Florestas são dizimadas, sem maiores preocupações com os animais que lhes habitavam. A reserva florestal deveria ser fiscalizada com rigor, e as punições deveriam ser severas. O egoísmo individual não pode predominar sobre o interesse da coletividade e de toda a fauna. Como ainda nos alimentamos de carne, que ao menos os animais não sejam abatidos com sofrimento. Que a bravura e o altruísmo do macaquinho nos sirvam de lição e advertência. Lição para que lhe sigamos o exemplo; advertência para que não maltratemos os animais, cujos sentimentos, reações e tipo de inteligência sequer conhecemos. Lembremo-nos sempre de que viajamos na mesma nave, ao redor do Sol. E se a nau for a pique, também iremos com ela.