Elmar Carvalho
 
 
 
Estava eu abastecendo meu carro num posto perto do condomínio Água Marinha, em Parnaíba, quando, de repente, o silêncio foi quebrado por um forte grito, longo, ritmado, quase como se tivesse algumas notas musicais estilizadas, com direito a um assobio no final. Surpreso, perguntei ao frentista a respeito de tão inusitado barulho. Respondeu-me ele que se tratava de um rapaz, que percorria toda a cidade de bicicleta, a soltar de quando em vez aquele tipo de berro. Acrescentou que já fora escrita uma reportagem sobre ele, que se tornara uma figura conhecida em toda a cidade.
 
Um pouco depois, encontrei o gritador em outro ponto da cidade. Desta feita, pude observá-lo melhor. Pareceu-me ser um homem ainda relativamente jovem, e magro. Ao emitir o seu grito vibrátil e musicalizado, vamos considerar assim, seguido do arremate artístico do assobio, deu-me a impressão de que todo ele vibrava. Era um grito alegre, festivo, vital, e não desesperado ou de dor. E sem ódio e sem revolta. Lembrei-me de que um galo, ao se preparar para soltar o seu cocoricó, movimenta as asas, como se estivesse em processo de aquecimento, para lançar o seu canto com mais força e entusiasmo. Suponho que o uivo do Gritador da Parnaíba seja uma espécie de catarse, em que ele lança para longe as emoções e os sentimentos que lhe invadem a alma.
 
Talvez esse grito seja a explosão de memórias atávicas, genéticas, ancestrais, quiçá oriundas da remota pré-história, que ainda remanescem em nós, como resíduos de uma herança dilapidada, diluída, que nos povoam o inconsciente, e que às vezes afloram, quando menos esperamos. É como se, com o berro, ele estivesse exorcizando sua porção de Mister Hyde, para voltar a ser o boa praça doutor Jekyll, que todos carregamos, em maior ou menor escala, nas mais diferentes combinações de dosagem. Ou – quem saberá com certeza? – o grito seja a manifestação musical primitiva desse homem, a expressar as forças líricas e artísticas, apolíneas ou dionisíacas, não importa, que se atropelam e chacoalham em sua alma, e esse uivo seja uma válvula de escape para que o Gritador da Parnaíba possa apaziguar-se, e não venha a explodir-se, seja em infarto, seja em loucura. O grito seria a poção miraculosa a lhe devolver a sanidade, ainda que em efêmeros intervalos.