acervo do autor
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Não sei se os leitores conhecem Umberto de M., contista dos gerais. Se ainda não leram seus textos, recomendo. Tal como se dizia antigamente a respeito deste país, Umberto de M. é o escritor do futuro. Dito isto, vamos ao que interessa, pois o tempo urge e me deram poucas linhas para esta crônica.

Fiz amizade com o aludido escritor em minhas andanças por aí. Trocamos telefone, viramos seguidores nas redes sociais e, volta e meia, nos falamos. Agora a pouco, ia eu correndo na avenida para manter em dia o cárdio quando, de repente, o celular interrompeu minha playlist oitentista.  

— O amigo não faz ideia do que aconteceu... Tá com tempo pra ouvir? Se não tiver, vou falar mesmo assim porque preciso contar pra alguém. Lembra quando comentei que me convidaram pruma reunião na Academia de Letras daqui da cidade? A reunião foi ontem. O amigo sabe que não atraso, porque mineiro não perde o trem né. Quinze pra cinco cheguei lá na sede... Você visitou Ares Formosos, vai lembrar. A sede fica naquele prédio caindo aos pedaços do lado da prefeitura... Mas se não lembra também não tem problema não. Vai ouvindo.

Ouvir era tudo o que me restava.

— Cheguei e dei com a cara na porta. Olhei prum lado, olhei pro outro, vi o presidente da Academia sentado na praça. Atravessei a rua, sentei ao lado dele. A chave fica com a primeira-secretária, me disse. Daí a pouco chegaram duas imortais, vieram fazer companhia pra gente. E assim outros foram baixando, já estava até chamando atenção dos transeuntes aquele povo ali, igual bicho-de-monte, aglomerado no banco. O sino da matriz bateu uma, duas, cinco vezes e nada da fulana brotar. O papo se desgastou. Então ficamos olhando as crianças saindo da escola, os lavadores de carro torcendo os panos e recolhendo os baldes, os funcionários públicos encerrando o expediente... O amigo continua aí na linha?

Bem, na linha eu não continuava, afinal, estamos na era do celular. Todavia, deixei o chiste pra lá: Umberto de M. poderia tomar como deboche.

— Aí, quando o sino quase marcava cinco e meia, a confreira apareceu... Veja só, aprendi com aqueles fósseis que o feminino de confrade é confreira... A dona chegou, óculos escuros, cara lambrecada de ruge, uma penca de chaves na mão. Parou, franziu o sobrolho, acenou. Atravessamos a rua, mansos, tal como as cabras que esperavam Tieta, a pastora, tangê-las agreste afora.

Ri, baixinho, da metáfora.    

— Entramos pela primeira porta. Que rangeu feito um portal de casa mal-assombrada. Mas tinha outra pra destrancar. Aí, amigo, lascou de vez. Nada fazia aquela tranqueira abrir. A confreira enfiou a chave-tetra, rodou a chave-tetra, empurrou, bateu, enfiou as outras chaves. Nada. O presidente tentou, outros imortais o imitaram. Neca de pitibiriba. O jeito é chamar um chaveiro, alguém sugeriu. Mas a essa hora vai ser difícil achar algum porque esse povo não gosta de trabalhar, retrucou o camarada de olheiras profundíssimas. Àquela altura, a primeira-secretária culpava a faxineira que “certamente enfiou a outra chave de qualquer maneira aí e danificou a fechadura”. O presidente sugeriu realizar a reunião no apartamento dela, da primeira-secretária. “O regimento impede”, ela gritou, dedo em riste, sobrancelhas arqueadas. E tentou novamente destrancar aquele troço. O amigo me conhece, sabe que não guardo a língua na boca. Então sugeri: um chute certeiro, tipo aqueles do Chuck Norris, e essa porcaria vai ao chão. Os imortais me encararam num misto de espanto e ódio, o de olheiras profundíssimas danou a soluçar. A senhorinha ao meu lado, aproveitando que o sino anunciava o angelus, se persignou.   

Umberto de M., definitivamente, não é a pessoa mais apropriada para compor a Academia de Letras de Ares Formosos.

— Aí, amigo, um dos confrades teve uma brilhante ideia. Foi manquitolando até a escola, voltou minutos depois, rindo igual colegial. Os fósseis desviaram os olhos da porta pra ele, que pigarreou como se fosse palestrar. “Resolvido o problema, nobres confreiras e confrades. Dirigi-me ali, ao grupo escolar, onde, como cediço, exerci o incansável e valoroso ofício de mestre por anos a fio. Adjurei à direção e, incontinenti, meu pleito restou acatado. Desta feita, nossa preclara reunião realizar-se-á em uma daquelas sacrossantas salas”. Os imortais, em uníssono, suspiraram aliviados. E, infelizmente, meu arrombamento à lá Bradock ficou pra próxima.

Silêncio. Caiu a ligação, pensei por um momento.  

— Amigo, preciso desligar. Depois a gente se fala.

E desligou mesmo, nem esperou meu tchau. Mas os leitores não devem reparar: Umberto de M., o futuro imortal de Ares Formosos, é assim mesmo.