O frio que ainda sente o sapo jururu

Associações inconscientes de idéias, no caso das cantigas infantis de autores desconhecidos, podem ser consideradas sintomas de intuições coletivo-populares. Se faz sentido a ideía de que "a voz do povo é a voz de Deus", por vezes essas intuições parecem emanar de um lugar privilegiado, simbólico, que se sobrepõe às fontes individuais de meros ditos de pessoas físicas, ou seja, dos mortais, nós.

Há muita festa e alegria em casamentos, mas nunca deixou de pairar no ar a possibilidade de desistência, na "hora agá", não só do noivo, mas também da noiva (à primeira vista, a grande interessada no enlace matrimonial, pelo menos no passado, daí a existência do dote, para que o incentivo ajudasse o noivo a se decidir, mediante paga). Em resumo, o casamento pode ser um problema - e isso explica o grande número de divórcios, hoje muito frequentes também na beira da lagoa.

Na cantiga Sapo jururu - essa particularmente nos interessa - o canto do sapo é associado a um estado de desconforto (frio). Ocorre que a mulher/noiva do sapo não está ao relento. Confortavelmente, ela não sente frio. E trabalha, fazendo rendinha "pro seu casamento", vale dizer que é noiva prendada e que já resolveu o seu problema de arrumar marido.

Bem, se ela já é mulher do sapo e ainda não se casou, evidentemente será honrada pelo sapo que a tirou da casa dos pais, um velho casal de cururus da lagoa. O futuro - ou já presente - sogro, respeitado no coral de batráquios, talvez seja o maestro da barulheira. O genro dos velhos sapões é sério, portanto.

Mas... merece o sapo passar esse horrível frio? Afinal, ele vai casar-se mesmo com a sua noiva! E não fugirá do casório, para não continuar a passar frio.

Será esse o "dote": parar de sentir frio? Ou será a própria obrigação de casar que o deixa jururu (tristonho)?

Já se pode prever o futuro desse sapo friorento: terá mulher e filhos girinos (depois sapinhos lindos), parará de sentir frio e de sapo cafajeste passará a ser considerado respeitável pai de família do brejo.

Resta saber se o Sr. Jururu não sentirá um dia saudades do tempo em que sentia frio, mas ainda não tinha tantas responsabilidades pesando em seu apertado orçamento mensal.  (Flávio Bittencourt, dedicando estas despretensiosas linhas ao saudoso Manuel Bandeira, autor do clássico poema Os sapos, peça literária que foi um dos produtos culturais fundadores do Modernismo Brasileiro, no qual Bandeira se situa - ainda que se dirigindo a ele ("tu") na segunda pessoa do singular - como um calejado e sensato cururu.)

Consta no portal Jangada Brasil:

"Sapo jururu - Cantigas infantis

 

Ouça também Uma fantasia no brejo, composição de Alessandro Valente a partir do tema.
 

 

Sapo jururu
Na beira do rio
Quando o sapo grita, ó maninha!
Diz que tá com frio

A mulher do sapo
É que está lá dentro
Fazendo rendinha, ó maninha!
Pro seu casamento

Variação:

Sapo jururu
Na beira do mar
Quando o sapo grita, ó maninha!
Diz que quer casar

Nota: Em alguns lugares, cantam sapo 'cururu' "
 
 
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"OS SAPOS
 

                    Manuel Bandeira   

 

Enfunando os papos,
Saem da penumbra
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.

Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:

- "Meu pai foi à guerra!"
- "Não foi!" -- "Foi!" -- "Não foi!".

O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: - "Meu cancioneiro
É bem martelado.

Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.

O meu verso é bom
Frumento sem joio
Faço rimas com
Consoantes de apoio.

Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.

Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia
Mas há artes poéticas . . ."

Urra o sapo-boi:
- "Meu pai foi rei" - "Foi!"
- "Não foi!" - "Foi!" - "Não foi!"

Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
- "A grande arte é como
Lavor de joalheiro.

Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo."

Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
- "Sei!" - "Não sabe!" - "Sabe!".

Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;

Lá, fugindo ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é

Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo cururu
Da beira do rio...".